Discos Fundamentais: Dom Salvador & Abolição - Som, Sangue e Raça (1971)


Por Tárik de Souza
Jornalista

Este não é apenas um disco seminal, recuperado pelo trabalho meticuloso do titã pesquisador Charles Gavin. É um estuário. Todos os rios negros que formaram o funk/hip hop nativo confluem para ele.

Comandado pelo pianista paulista Salvador Silva Filho, o Dom Salvador, Som, Sangue e Raça, de 1971, um ano depois da explosão de Tim Maia, cataliza a formação bossa nova e jazz do líder com rhythm & blues de integrantes como o saxofonista Oberdã Magalhães, sobrinho do mestre do samba enredo Silas de Oliveira e futuro líder da Banda Black Rio, que desde o grupo Impacto 8 já vinha tentando agregar MPB com Stevie Wonder e James Brown. Entram ainda na mistura samba, sotaque nordestino e até o lado negro gato da Jovem Guarda, representado pela presença autoral de Getúlio Cortes (irmão do posterior Gerson King Combo, o nosso James Brown cover) em "Hei Você!", uma das faixas mais destacadas.

Além destes elementos e da presença de Rubão Sabino (baixo) - que ainda se assinava Rubens -, do baterista Luis Carlos (outro que integraria a Black Rio), o disco arregimenta o trompete e flugelhorn do músico de sinfônica Darcy no lugar do original Barrosinho (mais um fundador da Black Rio), que estava excursionando durante a gravação mas seria o titular da banda.

Egresso do Beco das Garrafas e a caminho dos EUA, para onde se mudaria em definitivo ainda nos 70, Dom Salvador liderou o Copa Trio ao lado do baixista Gusmão e do batera Dom Um Romão. O grupo serviria de suporte para as decolagens de Elis Regina e Jorge Ben (antes do Jor), entre outros. Formou também o Rio 65 Trio com o baterista Edison Machado. O noneto Abolição (aí incluído o vocal de sua esposa, Mariá) foi uma saída para o desgastado formato trio da bossa nova.

E não só. Cada faixa de Som, Sangue e Raça é diferente da anterior por conta de um cuidadoso trabalho de fusão de elementos sonoros até contraditórios, como o pique folk de retreta de "Folia de Reis" moldado em acordeon, sopros (até tu, tuba?) e uma intrusa cuíca. "Moeda, Reza e Cor" tem um encadeamento de sopros que lembra os arranjos de Gil Evans para Miles Davis, mas logo desagua num solo de piano funkiado pelo baixo elétrico. "Samba do Malandrinho" levado pianinho (no elétrico digitar de Dom Salvador) remete para a bossa nova com direito a improvisos jazzísticos.

Já "Tio Macrô", repleto de reviradas de sopro e contraritmo sustentado por baixo, engata num samba funk. Intercalando grandiloquência e balanço, "Uma Vida" abre com declamação e uma longa introdução pianística, depois picotada pelos sopros. E tome funk na veia, como nas instrumentais "Guanabara" e "Number One".

O piano elétrico alicerça "O Rio", um funk andante que desata em samba de escola com direito a apitos. Também a construção de sopros funkiados da faixa título acaba num samba, movido à cuíca. Com acordeon e costura acústica, "Tema pro Gaguinho" lembra o choro dos regionais, só que devidamente turbinado. "Hey! Você" (belíssima a condução de sopros) combina R&B com um ritmo de baião que antecipa a fusão de Burt Bacharach. A tamborilada "Evo" emoldura um funk afro com cuíca e coro.

A riqueza das combinações torna o resultado muito acima da média do pop ralo das FMs, o que talvez explique o fato de o disco não ter estourado a despeito de tantos ganchos no recheio. Agora em CD remasterizado haveria até uma nova chance, se a situação não tivesse mudado. Para pior.


Faixas:
1 Uma Vida 2:47
2 Guanabara 3:11
3 Hei! Você 2:33
4 Som, Sangue e Raça 3:15
5 Tema Pro Gaguinho 2:28
6 O Rio 3:59
7 Evo 3:05
8 Number One 3:41
9 Folia de Reis 2:28
10 Moeda, Reza e Cor 3:21
11 Samba do Maladrinho 2:25
12 Tio Macrô 2:15


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