Discoteca Básica Bizz #052: Sam Cooke - The Man and His Music (1986)



Entre as dezenas de coletâneas disponíveis, esta tem bons motivos para ser considerada a antologia definitiva do Mr. Soul. Além da remasterização digital de todas as gravações, é a única que privilegia composições do próprio Sam Cooke, e que inclui - antes do desfile de hits clássicos - faixas de sua fase gospel.

Segundo a bíblia do assunto, The Gospel Sound: Good News and Bad Times, de Anthony Heilbut, os Soul Stirrers foram os verdadeiros criadores do som do quarteto vocal - um dos modelos tradicionais da gospel music que, transplantado para o terreno pop, daria o doo wop. Sam Cooke tinha 19 anos quando recebeu o convite para ingressar nos Stirrers, substituindo o solista R.H. Harris, em 1950. Em pouco tempo tornou-se uma das maiores estrelas do circuito gospel com os mesmos ingredientes que impulsionaram sua meteórica carreira pop: carisma sofisticado e tranquilo em uma voz capaz de rasgar, delirar, sobrevoar, sempre sem o menor esforço. Keith Richards: "Sam Cooke é alguém com quem todos os cantores tem de se medir, e a maioria acaba voltando para o emprego no posto de gasolina". Um dos maiores lugares comuns: "Todos os cantores de soul, de Otis Redding a Marvin Gaye, devem quase tudo a Sam Cooke".

The Man and His Music abre com dois dos maiores sucessos dos Soul Stirrers, compostos por Cooke e gravados em 1956, seu último ano à frente do quarteto. "Touch the Hem of His Garment", o primeiro deles, desvela a aspereza aveludada de um êxtase que só o genuíno cantor de gospel pode exibir, e que os Terence D´Arby da vida tentam simular. Quando, duas faixas depois, entra "You Send Me" - seu primeiro clássico pop, um estouro imediato em outubro de 1957 -, a leveza e a contenção, o estado de graça transferido para canções de amor apontam na direção oposta, sem perder uma gota de intensidade. 



Ao longo de sua carreira Sam chegaria a mesclar os dois sentimentos, às vezes num só compasso - caso de duas das últimas faixas desta coletânea em que sua formação gospel aflora dilacerando "Bring It on Home to Me" e "A Change is Gonna Come". Talvez sejam suas duas maiores obras-primas, o equilíbrio e a perfeição matutados em seus últimos anos (1960-1964), na RCA, sempre secundado pelas orquestrações de René Hall. "A Change is Gonna Come” - um lamento esperançoso pelo fim do racismo e da miséria, composto sob a influência de Bob Dylan - tornou-se o epitáfio de Cooke, assassinado com três tiros pela gerente de um motel barato, numa história até hoje muito mal contada.

Na RCA Sam conquistara total autonomia de trabalho e, paralelamente, acabou montando seu próprio selo (gravando os Soul Stirrers e lançando a família Womack, entre outros) e a sua editora. Pouco depois, Barry Gordy Jr. seguiria o exemplo e fundaria o império Motown, marcando uma nova era para a música negra americana. 

Sam nunca foi perdoado pelo público de gospel por ter "vendido sua alma" à "música profana", mas, para os cantores de blues e R&B acostumados a vender suas músicas por uma ninharia, sua atitude foi uma bênção. Não tinha o menor pudor em capitalizar em cima de modismos descartados num piscar de olhos e eternizá-los com sua interpretação desumana, porque divina - caso de “Twistin' the Night Away" e "Everbody Likes to Cha Cha Cha". 

Neste disco duplo está uma série de canções das demais "comerciais" e mais sublimes da história - "Wonderful Wold", "Only Sixteen", "Chain Gang". Em suma: o mapa da mina.

(Texto escrito por José Augusto Lemos, Bizz #052, novembro de 1989)

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