Review: Romero Ferro - Arsênico (2016)


A artificialidade como arte suprema, esta é a essência do pop. Décadas de pop. Enciclopédias sobre o assunto comumente divergem sobre sua origem, sendo porém que o mais aceito entre os especialistas no assunto é que, estritamente enquanto gênero musical, o pop tenha surgido como uma construção da indústria em reação ao sucesso que artistas como Elvis Presley e Jerry Lee Lewis estavam fazendo interpretando a música negra. Ao passo que tais músicos gozavam de altas vendagens, o mercado não via com bons olhos todo o sangue, suor e rebeldia que exalava da música praticada, assim como da atitude adotada pelos astros, o que basicamente era o bastante para catalogá-los como ameaças; que vendiam em quantidades convenientemente grandes, mas que ainda assim eram ameaças, ou na melhor das hipóteses, inconfiáveis e imprevisíveis.

O mercado passou então a oferecer versões limpinhas, comportadas e inofensivas destes, inaugurando assim este segmento sonoro, que viria a se tornar tanto objeto do mais passional amor, quanto do mais virulento ódio e escárnio desdenhoso.

Fato é que o uso do artifício sedutor para a cooptação do potencial consumidor já não era novidade então. Tal pérfida e deliciosa estratégia já estava presente nos comerciais, nos filmes e na literatura, por exemplo.

O jornalista cultural José Augusto Lemos, por sua vez, apontou, certa feita, para o fato interessantíssimo de que mesmo antes do boom dos caipiras branquelos, todos os elementos que caracterizavam o pop enquanto expressão musical, como o bom-humor, a sugestão erótica, o balanço irresistível, as melodias grudentas e fáceis, assim como as artimanhas estéticas, já se encontravam sintetizados no que artistas brasileiros como Luiz Gonzaga e Carmen Miranda tinham desenvolvido.

Faz todo o sentido. De qualquer maneira, nos anos posteriores o improvável aconteceu, com a encantadora descartabilidade do pop indo de encontro a uma essência verdadeiramente substancial. Primeiro com os Beatles, e no ápice, com a banda inglesa Roxy Music, que construiu a obra que melhor lidou com as contradições e tensões artísticas inerentes à perigosa tarefa de buscar uma interface entre consumo e arte.


É por esse caminho de paradoxos que Romero Ferro, artista natural de Garanhuns (PE), que já havia se aventurado por incursões no frevo, resolveu trilhar em Arsênio, seu primeiro álbum independente, onde apresenta um pop que, ciente de sua descartabilidade, almeja ser algo mais. Um pop que quer ser mais que simplesmente pop, mas que não parece carecer de muito pra isso, atingindo seu intento no simples exercício do ser e, com isso, conseguindo preservar toda aprazibilidade característica do gênero em uma música pra lá de despojada.

Tudo isso transparece não apenas no som apresentado, mas também no discurso adotado. "Se permita ser / Qualquer coisa menos superficial", os versos iniciais de "Hoje", dançante manifesto e primeiro dos dez temas do trabalho autoral do cantor e compositor, escancaram a pretensão de usar a artificialidade como suporte para buscar um algo além das meras aparências.

As referências que alimentam a obra são diversas e difusas, tanto a nível musical quanto estético. A produção oitentista é o fetiche principal, e junto ao soul compõe a base do que permeia a maior parte do disco, cuja musicalidade versátil comporta ainda escapulidas para o funk, disco, flertes com o urban e intervenções regionais de apelo universal. Mas não se engane. Este trabalho não é um exercício de revisitação do passado. É, antes disso, um empreendimento de resgate de um rico legado de volta ao futuro.

A ponte entre atitude e sofisticação é traçada no groove arrasador de "O Medo em Movimento", a faixa seguinte, cuja musicalidade resgata a sonoridade do perfeito ponto de transição entre o gospel e o soul, hospedando-a num contexto urbano pré-hip hop. O trio de metais composto pelos soberbos Nilsinho Amarantes (trombone), Fabinho Costa (trompete) e Liudinho Souza (saxofone), brilha.

A chique "Dropsatã" dá prosseguimento explorando nuances eletro e o que vem a seguir aposta numa mudança de rumos, saindo do clima essencialmente dance para abrir caminho por toadas sentimentais de rico valor. "Cidadão Perdido" e "Só" fazem parte do seleto grupo de canções de amor que realmente importam.

Neste ponto surge mais uma surpresa. O lirismo sensível dá lugar à crônica amorosa escrachada sendo embalada por latente pulsação tecno brega na ótima "No Mesmo Teto". Logo após, "Solidão é Nada" traz a frequência rítmica do reggae para a praia do pop, enquanto a climática "Até Onde Se Vai" explora contrastes desconcertantes em meio a uma ambientação essencialmente obscura, noutra das melhores canções do disco.

"Veneno" vem a seguir trazendo mais uma vez a essência do discurso amoroso sem papas na língua do brega, ao passo que o dance das primeiras canções do álbum retorna. "Dois", um tema essencialmente pianístico, encerra o disco, sendo provavelmente, o mais ambicioso momento do trabalho.

A capa de sensível bom gosto estético foi criada por Caramurú Baumgartner com foto de Lana Pinho. A produção ficou a cargo do multi-instrumentista carioca Diogo Strausze, tendo em sua formatação o auxílio do grandíssimo Amaro Freitas, incrível pianista pernambucano autor de Sangue Negro, outro dos grandes discos do ano, e que pelos serviços prestados recebeu os créditos de co-produção no álbum, um trabalho que logra na dura arte de ser pop sem, em momento algum, desligar o cérebro.

Por Artur Barros

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