A formação do gosto musical


Ao discutirmos o gosto por determinado artista, banda, álbum ou música preferida, há sempre aquele conflito que acalora a discussão em um dilema que aparentemente parece insolúvel. Afinal, o gosto é “objetivo” ou “subjetivo”?Várias e várias vezes lá estamos nós naquela interminável discussão na mesa de bar, faculdade ou internet tentando desqualificar aquele amigo ou amiga que não gosta de determinado artista. Por sua vez, parece que essa discussão nunca chegaria a um consenso, deixando sempre um clima de rivalidade e conflito criando um contingente de inimizade entre fãs de bandas diversas, tais como Metallica, por exemplo, contra aqueles que curtem Megadeth. A primeira é melhor, dizem uns, a segunda que é, dizem outros. Segue a partir daí inumeráveis listas de artistas/bandas subestimados, superestimados, melhores, piores, etc, que são alvo de polêmica entre fãs mais “ortodoxos”.

O que tentaremos propor aqui é dar uma resposta a essa discussão. Podemos iniciar com uma breve definição prévia: a formação do gosto musical é fundamentalmente social. Isto quer dizer que o gosto não é “objetivo”, nem “subjetivo”. Parece confuso, mas vamos seguir adiante. Existe um argumento complexo que foi elaborado em um ramo dentro dos estudos na filosofia (e, posteriormente, até mesmo na ciência), reproduzida por especialistas em crítica artística, artistas profissionais, entre outros agentes que estão inseridos na esfera social da arte (e suas subdivisões, literária, cinematográfica, musical etc.), que seriam os estudos denominados de “estética”, a qual considera uma avaliação sobre a obra de arte como algo à parte da existência humana e, portanto, passível de ser avaliada “objetivamente”. Assim, a obra de arte teria o seu significado, sua existência como algo em si. A pintura, a música clássica ou filme do renomado diretor Andrei Tarkovski seria belo por natureza, sublime e fugidia à sensibilidade das pessoas ignorantes que não conseguiriam captar tamanha beleza. No entanto, colocar que a arte possui um valor em si mesma revela uma ilusão. A existência das contradições nos distintos gostos entre pessoas, grupos e classes sociais mostra que a obra não possui um valor “objetivo”, uma essência mesma sem que um ser humano tenha feito alguma atribuição a ela. Se houvesse uma natureza própria que poderia ser medida e avaliada “objetivamente”, existiria um consenso no gosto musical. Como bem podemos notar, não existe consenso na realidade, mas divergências e conflitos.

O outro lado do problema seria a “subjetividade”, o que nos leva ao relativismo. O gosto passaria pelos sentimentos, as experiências e a sensibilidade de cada um que se identifica com aquilo de maneira singular. Dessa maneira, a obra de arte seria um problema de perspectivas diferentes, em que cada indivíduo seleciona aquilo que lhe convém e agrada. Portanto, devemos ser tolerantes e aceitar as diferenças musicais, ou seja, não existe uma hierarquia na formação dos gostos que poderia estabelecer uma diferença entre obra de arte “ruim” ou “boa”, “popular” ou “elite”. Afinal, todas são músicas. Podemos dizer que existe dentro desse dilema um momento de verdade. Sem dúvidas, cada ser humano é singular, histórico e possui sentimentos, concepções e ideias derivadas de sua trajetória de vida; mas, dentro das diferenças, há também o que é comum. A partir do que é comum, ou homogêneo, que começaremos a revelar a formação do gosto musical.

Como colocado anteriormente em nossa definição prévia, o gosto é formado socialmente. Podemos entender dessa definição que são os seres humanos que atribuem valor aos “seres” (objetos, ações, pessoas, ideias etc.). Assim, o que leva a uma pessoa a valorar (dar valor próprio) determinada obra de arte? Esse critério é determinado pelas condições histórico-particulares da sociedade em questão. Podemos ver que grande parte da música que ouvimos é um produto capitalista que precisa ser vendido, distribuído e divulgado pelos artistas para que cheguem aos nossos ouvidos. A demanda para realizar tamanha tarefa exige um capital comercial (empresas especializadas em vender discos, iPod’s, vinis, etc.) que possa comercializar a música produzida. Um capital fonográfico (gravadoras como a EMI, SONY, WARNER, entre outras) que mediria a relação entre o artista e o público, no qual se coloca determinadas exigências na seleção das músicas que chegarão até nós, bem como forma e conteúdo, na duração da música, o single (faixa lançada de forma separada do disco), a mensagem que as letras vão repassar ao público, como também a composição dos arranjos, a interpretação, a melodia que podem variar do mais trivial ao complexo. E, por fim, ainda temos o capital comunicacional, o que envolve a divulgação das músicas por meio de programas de TV, festivais, rádio, internet, entre outros lugares. 

Além dessa chamada indústria da música produzida pela nossa sociedade, cada vez mais movida pelo capital, existe também a formação de blocos diferentes do público ouvinte, o que designaremos como distinção social. A distinção social nos revela a especificidade que é criada na determinação de qual segmento social a música será direcionada. Temos um público mais intelectualizado que valora a técnica, o arranjo, ou seja, uma música mais complexa. Dentro desse estilo podemos destacar o jazz, música instrumental, rock progressivo e música clássica. Temos também a música trivial (ou mais comumente conhecida como música “brega”), que seria a música “popular”. Os arranjos são mais simples, a mensagem e a interpretação são mais fáceis de serem assimilados. Na música mais complexa exige-se uma reflexão maior, concentração e interpretação. Na música trivial não há tanta exigência, tal como vemos na música sertaneja, funk “ostentação” e derivados. Portanto, a distribuição da música é diferenciada dentro de uma determinada população, variando dentre desses blocos: intelectualizado e popular. Dentro disso, acrescentamos que, geralmente, as classes privilegiadas compõem o primeiro bloco, enquanto as classes desprivilegiadas compõem o segundo, e também existem outras subdivisões nos blocos entre grupos sociais, tais como os punk’s, “metaleiros”, evangélicos, diferenças regionais, etc.

A importância da compreensão das condições de formação do gosto musical nos mostra o significado de suas origens sociais e históricas sobre como determinado estilo/artista/banda começou a ser divulgado de forma massiva nos meios sociais e, por conseguinte, chegou até os nossos ouvidos, sendo apreciados e valorados em nossa vida. Podemos tomar como exemplo o estilo musical conhecido como rock, o qual se tornou amplamente divulgado em muitas regiões do Brasil, mas é amplamente cantado em inglês e influenciado por bandas dos Estados Unidos e Europa (principalmente Inglaterra). Mesmo que outras bandas da Argentina, Chile, Brasil ou Finlândia possam ter como ambição criar uma banda de rock, a linha de composição seguirá o idioma anglófono. Isto não quer dizer que o inglês é mais “bonito”, “melódico” ou qualquer problema desse gênero. Essa questão revela apenas que o rock se tornou um estilo extremamente popular, divulgado nos países de todo mundo e a origem disso se encontra nos interesses do capital (fonográfico, comunicacional e comercial/industrial) por trás. A explicação do desenvolvimento de determinado estilo, popularização e divulgação em determinados países e épocas históricas foge ao interesse desse breve texto, pois demandaria muito espaço. 

Assim, ouvir determinado artista/banda/cantor nos mostra a formação da música como um fenômeno social, que se torna cada vez mais homogêneo em nossa sociedade. Aqui no Brasil, como na Inglaterra, encontramos ouvintes de Metallica ou Megadeth, dentre outras bandas de sucesso. As turnês dessas bandas são lucrativas ao redor de quase todo o mundo. São bandas que conseguem tocar em estádios lotados, terem vendagens lucrativas de discos e consolidarem um estilo (thrash metal), aparentemente “impopular”, tornando-o conhecido ao redor de todo o mundo. Portanto, o nosso gosto é formado através dessas influências, por meio de determinadas condições sociais e históricas, que possibilitam conhecermos determinados artistas ou bandas, de determinado país. Gostar ou não de uma música/artista mostra para nós nossos interesses, pertencimento de classe, sentimentos e ideias que temos sobre a realidade. 

Em suma, a música é sempre determinada pela realidade social em que estamos inseridos. Podemos gostar ou não das letras de rap, funk, rock ou sertanejo, odiar ou adorar ouvir aquele rock progressivo ou thrash metal com nossos amigos, mas o fundamental é perceber que cada estilo é transitório, histórico e particular da sociedade em que vivemos. Fica assim a discussão para novas reflexões e comentários sobre o assunto.

Por Felipe Andrade

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