Discografia Comentada: Titãs - Primeira Parte


Em 1968 foi fundado em São Paulo o Equipe, inicialmente um cursinho pré-vestibular mas que depois começou a incorporar também séries do ginásio (5ª à 8ª série) e, já nos anos 1990, do ensino fundamental (1ª à 4ª série). Formado por professores ligados ao curso de Filosofia da USP, o mesmo se tornou um foco de resistência ao regime militar – teve inclusive no final da década de 1970 como professor de história o ex-político petista José Genoíno – e uma das atividades que mais chamavam a atenção no colégio eram os shows organizados por Serginho Groisman, na época líder do Centro Cultural do Equipe. Vários dos principais artistas da MPB se apresentaram por lá, entre eles Gilberto Gil, Alceu Valença e Luiz Melodia, e alguns dos alunos presentes nesses shows – alguns que até ajudavam na organização – formariam, alguns anos depois, uma das mais importantes bandas da história do rock brasileiro.

Após uma apresentação no evento estudantil A Idade da Pedra Jovem no final de 1981, já com o nome Titãs do Iê-Iê, Ciro Pessoa animou-se o suficiente para aliciar os participantes do projeto para formar uma banda. Todos, com exceção de Sérgio Britto, participavam (ou haviam participado) de outros grupos na mesma época: Paulo Miklos e Arnaldo Antunes integravam o Aguilar e a Banda Performática, oriundo da vanguarda paulistana de nomes como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção; Branco Mello, Marcelo Fromer e Tony Bellotto (o único que não chegou a frequentar o colégio) formavam o trio Mamão e as Mamonetes, e Marcelo também chegou a integrar a banda Maldade; e Nando Reis era o backing vocal do Sossega Leão. Juntos ao baterista André Jung, trazido por Paulo Miklos, começaram a ensaiar constantemente, e fizeram o primeiro show oficial no SESC Pompéia, no dia 15 de outubro de 1982.

Após várias indefinições sobre quem tocaria o quê, a banda ficou definida com Fromer e Bellotto como guitarristas, André na bateria, Branco, Ciro, Arnaldo e Nando nos vocais/backing vocals, e Paulo e Sérgio se revezando entre baixo e teclado (além de cantarem também). Mais pra frente Nando Reis acabaria assumindo o baixo, com Britto se firmando como tecladista e Paulo entrando pro time dos vocalistas (apesar de ocasionalmente tocar sax e teclado), mas foi essa formação que começou a percorrer o underground paulistano, junta a bandas como Ira!, Ultraje a Rigor e Mercenárias. A recepção do público nem sempre era das melhores, já que o grupo apresentava uma grande variedade de de estilos em suas canções (new wave, brega, reggae, ska), o que não era muito bem visto por quem frequentava casas como Napalm, Rose Bom Bom e mesmo o Circo Voador, no Rio de Janeiro, onde tomaram uma vaia histórica. Mas o som ia sendo moldado aos poucos, e a reputação da banda foi assim melhorando (mesmo que lentamente).


Titãs (1984)

Após o estouro da Blitz e “Você Não Soube Me Amar”, as gravadoras começaram a contratar várias bandas novas de rock na tentativa de repetir o sucesso do grupo carioca. E junto de outros grupos paulistas da época, os Titãs, que recentemente haviam tirado o “do Iê-Iê” do nome, assinaram com a Warner no final de 1983, lançando no ano seguinte seu debut. “Sonífera Ilha”, cantada por Paulo Miklos – Ciro, o principal compositor da canção e que a cantava nos shows, saiu para formar o Cabine C antes das gravações – foi o carro-chefe do LP, e se tornou um hit nacional, mas ainda assim não foi o suficiente para fazer dessa estreia auto-intitulada um sucesso comercial. Pra piorar, ninguém ficou satisfeito com a sonoridade final (algo que assombrou muitas bandas nos anos 1980) com guitarras frouxas, som de bateria fraquinho e Sérgio Britto ainda tocando um teclado de brinquedo. Quanto ao repertório, parecia mais um amontoado de ideias confusas, com estilos variados e repleto de versões como “Querem Meu Sangue” (“The Harder They Come”, de Jimmy Cliff) e “Balada para John e Yoko” (nem precisa dizer de quem), mas onde destacam-se a estranha “Babi Índio”, a romântica e também single “Toda Cor”, e as esquecidas “Demais” – uma balada meio brega – e “Seu Interesse”. Também encontram-se aqui “Marvin” (outras versão, dessa vez de “Patches”, de Clarence Carter) e “Go Back”, que se tornariam dois dos maiores clássicos do grupo alguns anos depois – em regravações bem superiores as versões aqui presentes, diga-se de passagem. (Nota 5)


Televisão (1985)

O ano de 1985 literalmente começou com uma mudança importante na formação da banda, com a demissão de André Jung logo após o réveillon para a entrada de Charles Gavin (recém-saído do Ira! e que estava ensaiando com o RPM). Estabelecia-se a formação que seria a definitiva do grupo, mas infelizmente isso não foi suficiente para fazer de Televisão um grande disco. A produção ficou a cargo de Lulu Santos, que não se entendeu com a banda – que curiosamente o tinha sugerido para a função – resultando em mais um álbum confuso e com um som ruim – e datado. De positivo, ao menos um repertório melhor, com a ótima faixa-título, a new wave “Dona Nenê” (originalmente dos Jetsons, banda formada por Ciro Pessoa, Branco Mello – tocando baixo – e Charles Gavin e que não chegou a se apresentar), o doo wop “Sonho Com Você”, o lado B “O Homem Cinza”, e as quase punks “Autonomia” e “Massacre”, essa cantada por todos os vocalistas – exceto Nando Reis. Já as mais puxadas para o reggae “Insensível”, “Pra Dizer Adeus” e “Não Vou me Adaptar” ganhariam versões melhores no futuro. Com as vendas ainda ruins, a pressão sobre a banda foi ficando cada vez maior, e o clima só piorou com a prisão de Arnaldo Antunes e Tony Bellotto por posse de heroína no final do ano – o vocalista acabou também indiciado por tráfico, e passou cerca de um mês no xilindró. Shows e participações em programas de TV foram cancelados, mas o jogo estava prestes a virar, ainda que poucos esperassem isso. (Nota 6,5)


Cabeça Dinossauro (1986)

Após as baixas vendagens dos primeiros álbuns, a banda tinha apenas mais uma chance de provar para a Warner que podia ser um produto vendável para o mercado – o contrato previa a gravação de só mais um LP. Felizmente, Cabeça Dinossauro não só deu ao grupo o sucesso comercial que tanto buscavam como se tornou um dos grandes clássicos de sua geração, sendo presença constante em listas de melhores discos da música brasileira. Influenciados pelo clima conturbado após as prisões de Arnaldo e Bellotto, e também pela aproximação de Branco Mello com bandas do underground paulista da época (em especial os Inocentes, cujo disco Pânico em SP teve inclusive a produção do próprio), o álbum apresentava uma sonoridade mais crua, com o punk rock ditando o ritmo em músicas como “Igreja”, “Porrada” e a clássica “Polícia”. Mas também havia espaço para funk (“Estado Violência”), reggae (“Família”, “Dívidas”) e a adaptação de um canto dos índios do Xingu na faixa-título, mostrando que a pluralidade de referências não havia sido esquecida. E falando nos primórdios do grupo, duas músicas que datavam dos tempos de Titãs do Iê-Iê (“Bichos Escrotos” e “Homem Primata”) foram enfim registradas, e ambas se tornaram dois dos maiores hits da banda, assim como “AA UU” e a concretista “O Quê”, faixa com forte acento eletrônico e que mostrava os caminhos que seriam (parcialmente) seguidos no futuro. Ainda que as letras mais “engajadas” sejam bem pueris, não há como diminuir o impacto do LP, que deu a banda seu primeiro disco de ouro (chegaria a platina dupla logo depois) e marcou o início da parceria com o produtor Liminha, que se tornaria quase que um nono Titã nos próximos anos. (Nota 10)


Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas (1987)

Com moral elevada na gravadora e aceitação tanto do público como da crítica, os Titãs entraram em estúdio dispostos a experimentar em seu quarto disco. Como resultado, o lado A de Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas é repleto de experimentos eletrônicos, bem na linha de “O Quê”. Por mais que “Todo Mundo Quer Amor” e “O Inimigo” soem mais como se eles estivessem aprendendo a mexer com samplers e programações, essa tentativa de expansão do som do grupo também acaba rendendo bons frutos, vide “Corações e Mentes” e os hits “Comida” e “Diversão”. Já o lado B é praticamente uma continuação da faceta mais punk de Cabeça Dinossauro, mas com uma óbvia evolução tanto na produção – provavelmente a que melhor envelheceu entre os álbuns da banda nessa década – quanto nas letras. Todas desse grupo se destacam, da faixa-título a “Nome aos Bois”, passando por “Desordem”, “Lugar Nenhum” (um dos grandes clássicos da banda) e as pouco lembradas, porém não menos boas, “Mentiras” e “Armas pra Lutar”. A versão em CD, lançada anos depois, encerra-se com “Violência”, cuja parte da gravação é mostrada no documentário A Vida até Parece uma Festa – título tirado da letra de “Diversão” – com direito a um esporro homérico de Liminha em Charles Gavin. Lançado com um show consagrador no primeiro Hollywood Rock, em janeiro de 1988 – a banda sempre se sobressaía em cima dos palcos – Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas manteve o sucesso anteriormente alcançado sem maiores dificuldades. No mesmo ano, ainda fariam suas primeiras apresentações fora do país, o que resultou no disco seguinte. (Nota 8,5)


Go Back (1988)

Álbuns ao vivo gravados no renomado Montreux Jazz Festival já eram comuns para artistas brasileiros na década de 1980. Nomes como Gilberto Gil, Pepeu Gomes, João Gilberto e também Elis Regina (ainda que postumamente) já haviam lançado registros de seus shows no festival suíço, e com essa tendência chegando ao BRock – com os Paralamas do Sucesso lançando D, gravado na famosa noite brasileira do festival, em 1987 – os Titãs aproveitaram para gravar sua apresentação no festival para seu primeiro disco ao vivo. Tudo quase foi abortado após o show ter sido, de acordo com Nando Reis, “um desastre” – pouco público, por serem a primeira banda da noite, e problemas com o equipamento – mas após boa parte dos vocais e instrumentos serem regravados em estúdio, resolveram lançar a bolacha como o previamente combinado. Por mais que alguns possam ficar decepcionados em relação à esse fato, overdubs em estúdio são algo de praxe em qualquer disco ao vivo mundo afora, e Go Back apresenta boas versões tanto dos principais sucessos (“AA UU”, “Polícia”, “Lugar Nenhum”) quanto de músicas que ficaram esquecidas com o tempo, como “Pavimentação” e “Massacre” (aqui cantada apenas por Branco Mello), que assim como “Não Vou me Adaptar”, foram praticamente rearranjadas, mas acabaram ficando superiores às originais presentes em Televisão. Além disso, o LP também serviu para transformar “Marvin” e a faixa que dá título ao disco nos hits que não tinham sido quatro anos antes. (Nota 7,5)


Õ Blésq Blom (1989)

Em 1989, o “boom” do rock nacional estava chegando ao fim, com estilos como o sertanejo começando a tomar conta das rádios e televisão. Mas os Titãs, junto a poucas outras bandas, ainda era uma das que tinha destaque na mídia, e Õ Blésq Blom chegou às lojas quase como um clássico instantâneo, com críticas ultra elogiosas e a pecha de melhor disco de sua geração – mais um. Também chegaram a ser taxados de “retropicalistas”, tanto pela proximidade com nomes como Caetano Veloso (que fez o release do disco) quanto pela propagada “brasilidade” do repertório, que nem era tanta assim, para dizer a verdade. O que realmente é mais notável no LP é o melhor uso dos efeitos eletrônicos em comparação ao álbum anterior (ainda que hoje eles soem, novamente, datados), como pode ser comprovado na ótima “Miséria” e em “Deus e o Diabo” – eles também aparecem, em menor escala, na maioria das outras canções. De resto, o que prevalece é um repertório extremamente regular – só “Faculdade” acaba destoando – onde praticamente tudo funciona, seja o estranho reggae “O Camelo e o Dromedário”, a agressiva “Medo” ou o quase country-rock “32 Dentes”. Também vale destacar “Racio Símio” e o rockinho “Palavras”, com algumas das melhores letras já feitas pelo grupo. “Flores” e “O Pulso” foram os maiores sucessos do play – especialmente a primeira – e ajudaram a manter o nome da banda em evidência, em um momento de mudanças no mercado, planos econômicos furados e várias bandas passando por momentos de baixa ou de “transição”– algo que os próprios Titãs enfrentariam logo depois. (Nota 9)



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