Discoteca Básica Bizz #072: Little Richard - Here's Little Richard (1957)


"A wop-bop-a-loo-bop-a-lop-bam-boom!... Tutti frutti, awrooty!": o que exatamente quer dizer esta espécie de esperanto da selva, o mais célebre grito de guerra do rock and roll roll?

Exegetas atenciosos concordariam que tem algo a ver com o poder feminino, pelos parcos versos em inglês e suas referências a mulheres que jogam os quadris para o leste e oeste, garotas como "Sue ... ela sabe exatamente o que fazer" e "Daisy ... ela sempre me leva à loucura". Versos cuspidos como que por uma metralhadora encharcada de adrenalina, pelo homem que - ao trocar o rock pelo gospel - declarou: "Eu era um homossexual descarado até Deus me transformar."

O compacto contendo "Tutti Frutti" surgiu do nada, em 1955, para vender mais de um milhão de cópias. Como a garotada poderia permanecer imune? O próprio Elvis parecia uma freira perto de Little Richard, com seu ritmo atropelador, cabelo armado num pompadour, rosto maquiado e dois faróis de pura ameaça no lugar dos olhos. Os limites estavam traçados: até hoje não apareceu nada tão selvagem ou brutal no picadeiro pop. O fato de o próprio Prince lembrar tanto a "ambiguidade-com-bigodinho" de Richard fala por si só. Assim como o gesto de seu conterrâneo James Brown - ambos, assim como Otis Redding, nasceram em Macon, Geórgia -, capturando os Upsetters, banda de apoio de Richard, quando este trocou os palcos profanos pelos púlpitos do circuito evangélico.


Entre 1955 e 1958 (data de sua primeira conversão à igreja), a fórmula mágica do primeiro single rendeu uma saraivada de hits clássicos. "Long Tall Sally" - apesar de posteriormente gravada por Elvis e pelos Beatles - consagrou-se como vítima de uma das maiores injustiças/ironias da civilização: a gravação mais vendida mundialmente foi a de Pat Boone. Seguiram-se "Slippin' and Slidin", "Ready Teddy", "Jenny Jenny", "Good Golly Miss Molly" e "Lucille".

As últimas duas não foram incluídas neste LP, mas aqui estão gravações originais para o selo Specialty. Em 1964, Little Richard as regravaria para a Vee-Jay, responsável pelo Greatest Hits disponível - lançado aqui em 1988, pela Som Livre, com o título Os Grandes Sucessos. Por outro lado, esta pseudo coletânea da Vee-Jay contém uma preciosidade que não pode ser desprezada, o único Little Richard pós-1958 realmente fundamental: “I Don't Know What Got You But It's Got Me". Segundo o expert Peter Guralnick, "junto com 'The Dark End of the Street', de James Carr, talvez a maior balada soul de todos os tempos" - com um detalhe: Jimi Hendrix na guitarra.

As outras faixas de Here's Little Richard apresentam um contraste interessante com a histeria de "Tutti Frutti" e derivadas, deixando à mostra o débito para com a tradição rhythm ’n blueseira de Nova Orleans - especialmente o boogie woogie preguiçoso de Fats Domino. Esta cidade, tão importante para a música negra norte-americana, também foi sempre rica em excêntricos, extravagantes e aloprados como Professor Longhair - e duas figuras desta galeria são apontadas como fontes para a taquicardia sonora de Little Richard: Billy Wright (para o vocal) e Esquerita (piano, pompadour e bigodinho). Mas não há como compará-los à força bruta do "pequeno" Richard Penniman. Paul McCartney - que passou a vida imitando seu uivo em falsete - que o diga.

Texto escrito por José Augusto Lemos e publicado na Bizz #072, de julho de 1991

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