Discoteca Básica Bizz #105: Gil Scott-Heron - Pieces of a Man (1971)


"Sou um negro dedicado à expressão. Expressão do prazer e do orgulho da negritude. Não me considero poeta, compositor ou músico. São meras ferramentas usadas por caras sensíveis para esculpir uma peça bela e verdadeira, que eles esperam conduzir à paz e à salvação."

Assim Gil Scott-Heron se apresentava em Small Talk at 125th and Lenox (1970), seu álbum de estreia. Nada mal para um jovem escritor que aos 19 anos lançou o conto The Vulture (O Abutre), seguindo por uma coleção de poemas (com o título que daria ao disco) e outro livro, The Nigger Factory (algo como A Fábrica de Crioulos). Os temas? Combate ao racismo e críticas ferinas ao consumismo, ao poder das mídias e às aspirações medíocres da classe média americana. Só isso faria dele um precursor do rap, mesmo não se levando em conta que foi o pioneiro nesse estilo de canto falado.

Nascido em Chicago e criado no Tennessee, o cara acabou no Bronx, violento bairro de Nova York, onde foi forjar sua revolta diante da miséria do gueto. Mas, ao invés de bandidagem, ele preferiu usar a poesia como arma. Ganhou uma bolsa para a Universidade Lincoln, na Pensilvânia, desenvolvendo a militância anti-racista, a verve literária e a paixão pela música negra, do blues ao soul, passando - principalmente - pelo improviso intuitivo do jazz. Uma influência vinda de Brian Jackson, colega pianista de quem se tornou parceiro. A esta altura, Gil já lançara Small Talk at 125th and Lenox, com seus vocais proto-rap e percussão afro - em faixas como "Whitey on the Moon", "No Knock", "Brother" e "The Revolution Will Not Be Televised" (contundente poema de protesto, regravado por grupos como The Last Poets e LaBelle).


Bob Thiele - dono do Flying Dutchman, selo que editou o disco - chapou com os versos afiados de Gil aliados ao fino som da banda de Jackson: Pretty Purdie (o baterista) And The Playboys - com feras como Hubert Laws (flauta/sax) e Ron Carter (baixo). Acabou gravando um segundo álbum, Pieces of a Man - em apenas dois dias -, que começava com um arranjo definitivo para "The Revolution Will Not Be Televised" ("Você não será capaz de ficar em casa, brother / A revolução não será televisionada / A revolução não terá reprise, brother / A revolução será ao vivo!"). 

Abordava dilemas nas relações familiares ("Home is Where the Hatred Is" e a faixa-título) e amorosas ("When You Are Who You Are"), além de conter baladas inspiradas em Marvin Gaye ("Save the Children", "I Think I´ll Call It Morning") e um tributo ao sax de um de seus heróis ("Lady Day and John Coltrane"). 

Em 1972, Gil faria Free Will, com "Sex Education: Ghetto Style", "The Get Out of the Ghetto Blues" e "Did You Hear What They Said?". Depois mudou de gravadora e teve certa projeção com canções como "The Bottle", "Johannesburg" e "We Almost Lost Detroit". Sua associação com Jackson - chamada de Midnight Band - durou até o fim dos anos 1970, quando as suas apresentações tornaram-se esporádicas e Gil passou a dividir o tempo entre a música, a literatura e o jornalismo.

O trabalho de Gil Scott-Heron tornou-se inconstante, mas seus lemas de liberdade e não conformismo permaneceram perenes, pautados na inteligência e no refinamento, a anos-luz da truculência explícita do gangsta rap ou das variantes do estilo. O lamentável é que, com toda essa onda jazz rap e acid jazz, o cara mantenha-se pouco conhecido - e não reconhecido como um dos seus maiores criadores.

Texto escrito por Celso Pucci e publicado na Bizz #105, de abril de 1994

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