Discoteca Básica Bizz #139: The Harder They Come (1972)


A Jamaica dos anos 1940 é a Jamaica da favelização: meninos e meninas deixando o campo, despejando-se numa capital sem infra-estrutura para coisa nenhuma, onde apenas aparentemente gravitavam todas as esperanças do mundo. Eles ajudaram a ampliar os domínios de Trenchtown, Shantytown e outros colossos de madeira e zinco. Sem emprego, pisando nos fios de esgoto, dividindo corredores estreitos com porcos e ratos, muitos desses jovens caíam rápido na malandragem.

Foi nesse cenário trash que a vida real inventou Rhyging, o mais temido e famoso bandoleiro da Jamaica. Vincent Martin nasceu no distrito de St. Catherine em 1924. Escondia-se como um bicho, manejava armas e - claro - safava-se sempre das emboscadas da polícia e dos inimigos do gueto. A saga de Vincent terminou em Lime Cay, uma ilhota desabitada distante 12 quilômetros da costa. A força policial chegou de repente e destroçou o corpo dele à bala.

Foi em cima dessa história que o diretor Perry Henzell fez o épico The Harder They Come, uma das vitrines do jeito jamaicano de levar a vida. Jimmy Cliff encarnou o rude boy, cooperando para que o filme se tornasse um cult. No disco, Cliff aparece com quatro músicas ("You Can Get It If You Really Want", a balada "Many Rivers to Cross" - gravada por Eric Burdon e também por Joe Cocker -, "Sitting in Limbo" e a faixa-título - devidamente versada para o português by Titãs em "Querem Meu Sangue").


Scotty aparece em "Draw Your Brakes", cuja abertura em legítimo patoá jamaicano virou vinheta de nove entre dez programas de reggae no rádio. A folclórica "Rivers of Babylon", hino nyahbinghi adaptado do salmo 137, tocado nos tambores desde os primórdios da cultura rasta, surge em sua versão definitiva nesse álbum com os Melodians. É a "melô do Banzo" por excelência: "Pelos rios da Babilônia, para onde fomos trazidos / E onde choramos muito quando lembrávamos do Sião / Porque os vilões nos trouxeram aprisionados / Pedindo de nós uma canção / Mas como podemos cantar uma canção nossa numa terra estranha?”.

Toots & The Maytals, caras pesados na era do ska, do rock steady e do reggae (atribuem a eles o uso pioneiro do termo "reggay", em 1968) contribuem com "Sweet and Dandy" e "Pressure Drop", elos perdidos da transição rock steady/reggae entre 1969 e 1970. "Johnny Too Bad", com os Slickers, canta as desventuras dos rude boys, que tiveram o exemplo máximo e violento em Rhyging. Outra digna de festa é “(007) Shanty Town", com Desmond Dekker. Rolam apelos à coragem do detetive 007 e à camaradagem cantada por Frank Sinatra, Sammy Davis Jr. e Dean Martin em "Rat Pack".

Para quem se iniciou no reggae ouvindo Pato Banton, Shabba Ranks, Maxi Priest e Big Mountain, este disco pode parecer estranho. Mas ninguém que queira de fato entender qual é a do reggae pode se dar ao luxo de evitá-lo. Básico é pouco.

Texto escrito por Otávio Rodrigues e publicado na Bizz #139, de fevereiro de 1997

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