Discoteca Básica Bizz #141: The Smiths - The Queen is Dead (1986)


Talvez ainda seja cedo demais para avaliar o verdadeiro impacto dos Smiths na história do rock e da cultura pop. Poucas vezes foi tão rápido e fácil conquistar a adulação simultânea de público e crítica, pelo menos na velha Grã-Bretanha. E as primeiras manifestações mágicas da parceria Morrissey/Marr - singles preciosos como "Hand in Glove" e "What Difference Does It Make?" - já chegaram com sabor de clássicos instantâneos. Por outro lado, não é nada fácil encontrar traços de suas influências na atual geração de bandas.

Os Smiths foram o último suspiro de originalidade no rock britânico, a última banda relevante da explosão indie e o último legado da linhagem de Manchester, que havia dado Buzzcocks e Joy Division. Seus verdadeiros trunfos estavam em suas excentricidades: conseguiram soar ao mesmo tempo extremamente punk e pop, sem contar o homoerotismo celibatário, sem plumas ou paetês, desconcertante para os padrões da usina de entretenimento infantojuvenil.

O grupo estava mais que estabelecido no Olimpo do estrelato quando atingiu a maturidade e a perfeição em The Queen is Dead. O disco implodia de maneira grandiloquente a enxuta estrutura musical da banda. Uma orquestra de cordas transformando algumas das canções em verdadeiros épicos era o gesto de maior risco, tornando o som dos Smiths mais deslocado no tempo do que nunca. Este era o caso da ultra debochada faixa-título, do romantismo suicida de "There is a Light That Never Goes Out” e da quase patológica "I Know It's Over", certamente o momento mais ousado de Morrissey, compondo uma dilacerante canção de amor e adeus para a própria mãe.

A grande surpresa do disco estava, porém, no humor desenfreado, trazendo leveza de alma e os confortos do ceticismo à artilharia pesada que avacalhava a família real sem misericórdia em The Queen is Dead: imaginava mortes sádicas para Margaret Thatcher em "Bigmouth Strikes Again”, ridicularizava todos os medíocres do planeta em “Franky, Mr. Shankly" e extraía boas gargalhadas da obsessão pelo sexo com a impagável "Some Girls Are Bigger Than Others".


Nem um amigo como Howard Devoto - outro grande letrista de Manchester, líder do Magazine - escapou ileso da febre zombeteira que tomou o vocalista dos Smiths. Em "Cemetery Gates" ele compõe um hilariante manifesto narrando um passeio dos dois entre lápides e exibições de erudição, para concluir: "Você tem Keats e Yeats ao seu lado, mas perde / Porque Oscar Wilde está no meu." A mensagem é fechada, para quem desconhece a literatura inglesa do século XIX, mas basta dizer que, celebrando a vitória do mais leviano senso de humor sobre a sisudez, o idealismo e o classicismo, Morrissey resumia em uma cápsula o espírito do disco.

Tentando sacudir seus conterrâneos para acordarem de seu "passado glorioso" antes que McDonalds, Pizza Hut, Tom Cruise e Demi Moore tomassem conta, o bufão da agonia fracassou de maneira retumbante. Como pop star, porém, não se deu mal: seus discos solos podem ser irregulares mas nunca entediantes (mesmo perdendo as insuperáveis melodias de Johnny Marr), e suas turnês norte-americanas atraem multidões de adolescentes histéricas. O mesmo não se pode dizer do parceiro guitarrista, que hoje se dedica ao derivativo duo Electronic, em que ele e Barney Summer sujam a reputação de Smiths, Joy Division e New Order - isto é, pelo menos 80% do melhor rock de Manchester.

É realmente intrigante para a geração que deixou a adolescência pela chamada idade adulta nos anos 1980 (ouvindo coisas como Echo & The Bunnymen e Smiths) estar representada hoje, no mega estrelato, por baba diluída como R.E.M. (afinal, Michael Stipe tietou Morrissey incansavelmente) e U2 (provando que Brian Eno realmente transforma água em vinho). Mas, assim como o Oasis xeroca os Beatles, ainda podem surgir alguns moleques ingleses para refrescar a memória coletiva bebendo na fonte de Morrissey e Marr.

Texto escrito por José Augusto Lemos e publicado na Bizz #141, abril de 1997

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