Discoteca Básica Bizz #143: Pixies - Doolittle (1989)


A confissão de Kurt Cobain bate com o depoimento de outro monstro sagrado, David Bowie: "Fiquei puto quando escutei Nevermind pela primeira vez. A dinâmica das músicas era totalmente roubada dos Pixies!".

Essa genial brincadeira não é invenção do cantor e guitarrista Charles Michael Kitteridge Thompson IV. Indubitavelmente, porém, foi o quarteto que ele fundou em Boston que a elevou ao status de arte pop. Filho de pentecostais, Charles - ou Black Francis, como assinava na época - era um gordinho esquisito que amava Hüsker Dü (outra influência decisiva do Nirvana), ficção científica e a língua espanhola (fez intercâmbio em Porto Rico). Quando se juntou ao guitarrista Joey Santiago (filipino de nascimento), à baixista Kim Deal e ao baterista David Lovering para formar o Pixies, finalmente conseguiu botar para fora a confusão reprimida que insistia em gargalhar além de seu subconsciente.

Há quem prefira Surfer Rosa (1988), primeiro álbum do grupo, que ajudou a criar o mito do produtor Steve Albini. Mas o segundo, Doolittle, de 1989, tem um apelo irresistível. Contrariando o esnobismo underground do selo inglês 4AD, com quem tinham contrato, os Pixies trabalharam com som limpo, estruturas simples, senso melódico apurado (Elton John elogiou) e refrãos fortes.

Popular e doentio, quando saiu Doolittle foi interpretado pelo Melody Maker como um disco que tematizava a inutilidade da linguagem e a repulsa ao corpo. Parece pretensioso, mas faz sentido. E, igualmente importante, é divertidíssimo. O título referiria-se ao Dr. Doolittle, que, quem teve infância sabe, tinha o dom de falar com os animais. Era para ser Whore (prostituta), mas Francis achou "católico demais, ou bobamente anticatólico". Preferiu o homem que falava com as bestas, conceito que traduz seu estilo adoravelmente demente de cantar, um diálogo com monstros interiores.


Já na primeira faixa, "Debaser", Black Francis incorpora um freak adolescente urrando de excitação depois de ter assistido ao filme Un Chien Andalou, de Luis Buñuel, e tentando transmiti-la para uma colega: "Garotinha, é tão legal... ha ha ha ho! Fatiando os globos oculares... ha ha ha ho! Não sei de você, mas eu sou ‘un... chien andalousia’! Quero crescer para ser um pervertor." A voz de Kim Deal ecoa Francis ironicamente sexy: "Pervertor!"

Em "Hey", os grunhidos e gemidos dos dois fazendo sexo animal - a música é mais nirvanesca do que o próprio Nirvana - encaixaria perfeita em In Utero, com as vozes de Kurt e Courtney. "Tame" começa falando em "lábios de Cinderela", mas em poucos segundos explode num grito psicopata: "Você é tão mansa!". Kim geme, Francis arfa, as guitarras uivam, e todos (inclusive o ouvinte) chegam juntos a um orgasmo sonoro.

Em várias faixas as guitarras surf de Joey e Black prenunciam o revival promovido pelo locadora boy Quentin Tarantino. David Lovering canta um delicioso deboche sixties, "La La Love You".

"Monkey Gone to Heaven" tem celos, cordas, backing vocals celestiais de Kim Deal e uma desconcertante equação na letra: primata em desacerto com a natureza + numerologia bíblica = apocalipse. A poesia de Francis é tão brilhante quanto os desenhos melódicos de sua guitarra: "Beijei sereias, cavalguei o El Niño, andei pela areia com crustáceos, numa onda de mutilação". O produtor Gil Norton chegou a ficar assustado com alguns versos, mas Francis o tranquilizou: "É tudo bobagem, eles não querem dizer nada, são só sons que eu junto". Pois sim. Confiram a travadíssima "I Bleed": "Alto feito o inferno, um sino toca atrás do meu sorriso, sacode meus dentes e, esse tempo todo, enquanto os vampiros se alimentam, eu sangro".

Texto escrito por Pedro Só e publicado na Bizz #143, de junho de 1997

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