Discoteca Básica Bizz #157: Os Paralamas do Sucesso - Selvagem? (1986)


"Alagados" é o melhor exemplo da mudança que os Paralamas do Sucesso prepararam para este disco. A guitarra soa como um estranho casamento da música africana (a ju ju music, praticada por artistas como King Sunny Ade) com o carimbó do Pará e do Amazonas. Na letra, Herbert Vianna trocou os questionamentos pessoais por um retrato realista do drama cotidiano dos milhões de favelados que nos cercam. O restante do disco foi preenchido por uma musicalidade saborosamente brasileira, na contramão das tendências anglo-americanas que reinavam no rock da época.

Depois da consagração no Rock in Rio, em janeiro de 1985, quando 300 mil pessoas cantaram em coro "Óculos" (do álbum O Passo do Lui), seguida de uma centena de shows pelo Brasil, que se estenderam até agosto daquele ano, os Paralamas perceberam que estava na hora de se reciclar. Em vez de seguir a corrente favorável, os bons ventos que sopravam para seu pop reggae, resolveram arriscar mais neste seu terceiro trabalho de estúdio. Iniciando uma feliz associação com o produtor Liminha, Herbert Vianna, Bi Ribeiro e João Barone mostraram a seus contemporâneos que os caminhos para a renovação do pop apontavam mais para a cultura do Terceiro Mundo do que qualquer coisa produzida na Inglaterra e nos Estados Unidos.


Até subir ao estúdio carioca Nas Nuvens para gravar Selvagem?, o trio passou quase cinco meses fazendo uma espécie de laboratório. Ensaiando no estúdio Vovó Ondina (o apartamento da avó de Bi, onde o grupo nasceu), eles estavam decididos a encontrar novas soluções para seu som.

A reação à cruel realidade brasileira, que puderam comprovar nas turnês, não se restringiu a "Alagados". Na faixa-título, os Paralamas protestavam contra a débil censura do governo Sarney ao filme Je Vous Salue Marie, de Godard, além de enfocar a violência policial e o abandono dos sem-tudo. "A Novidade" marca o início da parceria do trio com Gilberto Gil. "Ó mundo tão desigual / De um lado este carnaval / Do outro a fome total", constatava a letra do baiano. Os Paralamas direcionavam suas lentes para o Oriente Médio em "Teerã" e mergulhavam em constatações existencialistas na faixa "O Homem".

Musicalmente rico, o disco parte do reggae e do dub jamaicanos para oferecer uma bem azeitada salada na qual tem lugar também pop africano, ska, rock e sotaques nordestinos. E fecha com mais um tiro na mosca, chamando pioneiramente a atenção para o soul carioca de Tim Maia (falecido em março de 1998) na recriação da balada "Você".

Texto escrito por Antônio Carlos Miguel e publicado na Bizz #157, de agosto de 1998

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