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Entre o silêncio e a herança: A Propriedade, de Rutu Modan (2015, WMF Martins Fontes)


Publicada no Brasil pela WMF Martins Fontes em 2015, A Propriedade é uma graphic novel que escava memórias enterradas com a precisão de quem conhece bem os caminhos da dor familiar. Escrito e ilustrado pela israelense Rutu Modan, o quadrinho acompanha uma viagem aparentemente simples: Regina, uma senhora judia, e sua neta Mica partem de Tel Aviv rumo a Varsóvia com o objetivo declarado de recuperar um imóvel que pertenceu à família antes da Segunda Guerra Mundial. Mas o que começa como uma disputa burocrática se revela, pouco a pouco, como um acerto de contas com o passado — aquele que se esconde em silêncios, meias-verdades e ausências compartilhadas.

Modan trabalha com a técnica do "ligne claire" (a linha clara popularizada por Hergé, o gênio belga criador de TinTim), traço limpo e direto que remete aos quadrinhos europeus clássicos. As cores suaves e a diagramação precisa criam um contraste interessante com a densidade emocional da narrativa. Nada aqui é exagerado: a dor está nas pausas, nos olhares que evitam contato, nas frases interrompidas. A própria autora declarou que fotografou atores para "encenar" cada cena antes de desenhar, o que explica o naturalismo gestual que permeia cada quadro.

A Propriedade fala de memória, identidade, herança e reconciliação geracional. O passado — representado pela história familiar de Regina — não apenas molda, mas limita a vida dos personagens. A neta Mica, mais desprendida, confronta a avó com delicadeza e frustração. E o leitor percebe, aos poucos, que a verdadeira viagem não é em busca de um imóvel perdido, mas de algo mais íntimo: o direito de lembrar e seguir em frente.

A edição brasileira é cuidadosa, com boa reprodução de cores e uma tradução que respeita os tons contidos do original. Faltou, talvez, um posfácio que contextualizasse a autora — vencedora do Eisner e do Ignatz Awards, e uma das vozes mais relevantes da cena israelense contemporânea —, mas isso não compromete a experiência. A editora publicou também outra obra da autora, Túneis, que saiu em 2024.

No fim das contas, A Propriedade é uma leitura que permanece. Não por grandes reviravoltas, mas pela forma sutil com que trata o que é mais difícil de dizer. Um quadrinho sobre os vestígios do passado — e como eles ecoam em cada geração.


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