Mulher-Maravilha: Terra Um: a reinvenção feminista, mitológica e sensual da amazona da DC (DC de Bolso, 2025, Panini)
Lançada em três volumes entre 2016 e 2021, Mulher-Maravilha: Terra Um é uma das versões mais ousadas da personagem desde sua criação nos anos 1940. Escrito por Grant Morrison e ilustrado por Yanick Paquette, o projeto faz parte da linha Terra Um da DC Comics, que reimagina os heróis clássicos em universos alternativos com abordagens mais modernas e autorais. Aqui, Morrison e Paquette mergulham fundo nas raízes mitológicas e simbólicas da personagem, com um foco claro em temas como empoderamento, opressão patriarcal e liberdade sexual — tudo com uma forte influência da visão original de William Moulton Marston, criador da heroína.
A trama central gira em torno da princesa Diana, criada em Temiscira pelas amazonas — uma sociedade isolada e exclusivamente feminina. Ao contrário de outras versões, aqui a ida de Diana ao mundo dos homens não acontece apenas por heroísmo, mas como um desafio à tradição e uma busca por autoconhecimento. Ela entra em conflito com sua mãe, Hipólita, e com as regras rígidas da ilha, ao se envolver com Steve Trevor, personagem reimaginado como um homem negro que reforça a crítica ao racismo estrutural além do machismo.
Grant Morrison revisita os conceitos clássicos da Mulher-Maravilha, mas subverte o olhar tradicional de super-heroína guerreira para algo mais simbólico e político. O laço da verdade, por exemplo, volta a ter conotações de submissão voluntária e prazer, algo que remete diretamente aos ideais de Marston sobre dominação benéfica e liberdade emocional. A obra aborda de forma explícita temas como o patriarcado, o feminismo radical, a sexualidade e a sororidade, com diálogos e situações que discutem abertamente o papel da mulher na sociedade.
Morrison amplia e reformula a mitologia das amazonas, resgatando e reinterpretando elementos da cultura grega clássica. As amazonas são mostradas como uma sociedade utópica, tecnologicamente avançada, mas ainda marcada por traumas do passado — especialmente a opressão que sofreram nas mãos de Hércules e dos homens. A mitologia grega serve de pano de fundo simbólico, mas é atualizada com questões de gênero: a rebelião das amazonas contra seus opressores, o banimento de Hércules e o nascimento de Diana a partir do barro (como na lenda original) ganham contornos mais psicológicos e existenciais.
O traço de Yanick Paquette é um dos grandes trunfos da série. Seu estilo detalhado e sensual trabalha em perfeita sintonia com o roteiro provocador de Morrison. A diagramação das páginas é criativa e simbólica, com molduras orgânicas que muitas vezes remetem à arte nouveau, à estética greco-romana e aos temas de dominação/sedução que permeiam a narrativa. Uma curiosidade interessante: para compor o visual da Mulher-Maravilha, Paquette se inspirou em diversas mulheres com feições marcantes — e entre elas está Sasha Grey, ex-atriz pornô e figura pública conhecida por sua presença visual forte. A escolha não tem relação direta com sua carreira, mas sim com seu olhar expressivo, traços faciais intensos e postura de autoconfiança, que combinam com a proposta de uma Diana mais provocadora e poderosa. Essa decisão reforça a abordagem estética e simbólica da série, que não teme abordar a sensualidade como elemento de força e identidade.
Apesar de dividir opiniões — principalmente entre leitores mais acostumados com a versão heroica tradicional da Mulher-Maravilha — Terra Um é uma obra importante por provocar discussões sobre o papel da personagem e sobre o que ela representa no século XXI. Ao trazer de volta os conceitos originais de Marston, como o uso do amor, da verdade e da dominação consensual como ferramentas de transformação social, Morrison recontextualiza a amazona como símbolo de libertação e ruptura. A trilogia é, ao mesmo tempo, reverente à história da personagem e profundamente iconoclasta. Ela não busca agradar a todos os públicos, mas sim gerar reflexão. É uma Mulher-Maravilha para tempos de debates intensos sobre gênero, poder e identidade — e nesse aspecto, é uma das versões mais relevantes e intelectualmente ambiciosas da personagem já publicadas.
Mulher-Maravilha: Terra Um é uma leitura desafiadora, visualmente deslumbrante e cheia de camadas. Não é a aventura super-heroica típica da DC, mas sim uma fábula feminista e mitológica com intenções filosóficas. Um marco na história da amazona — e uma obra que continua gerando debates importantes sobre a personagem e sobre a sociedade.
A história foi republicada pela editora Panini na série de DC de Bolso, com os três volumes reunidos em uma única edição de 376 páginas.
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