Ouroboros: o quadrinho brasileiro que vai fazer você parar para respirar e tomar fôlego (2025, Luckas Iohanathan, Comix Zone)
Até onde a dor do passado pode moldar – ou destruir – quem nos tornamos? Essa é a pergunta que atravessa cada página de Ouroboros, quadrinho escrito e desenhado por Luckas Iohanathan e lançado pela Comix Zone. Conhecido por obras que mergulham fundo no trauma humano, o autor potiguar entrega aqui seu trabalho mais duro, pessimista e visceral. Uma história incômoda, que obriga o leitor a pausar, respirar e decidir se está pronto para continuar.
A trama acompanha Kesler, um policial que, após viver uma experiência traumática, decide reencontrar a mãe com quem rompeu laços há muito tempo. Mas esse reencontro não é motivado por saudade ou afeto. O que existe ali é um confronto brutal com memórias que sangram: a mãe que o teve contra a vontade, a infância marcada pelo abandono e violência, e a constatação de que ele próprio, mesmo querendo fugir desse ciclo, acabou por reproduzi-lo de maneira ainda mais cruel.
O roteiro de Iohanathan é cirúrgico ao revelar a espiral de destruição que conecta gerações. O título, Ouroboros – referência à serpente que devora a própria cauda –, é mais que simbólico: traduz com perfeição a ideia de ciclos que se repetem, mesmo quando acreditamos estar rompendo com eles.
Visualmente, o quadrinho é um espetáculo à parte. Trabalhado inteiramente em tons de azul, a arte entrega uma estética contemporânea, fria e opressiva, o reflexo direto da jornada emocional do protagonista. Há ecos de quadrinistas como Bastien Vivès e até de certos momentos de Jeff Lemire, mas com uma assinatura própria e madura. A escolha cromática não é apenas estilística: ela pesa sobre os olhos como a culpa pesa sobre Kesler.A edição da Comix Zone é impecável, como já virou marca da casa. Capa dura, formato 15,7 x 22,5 cm, 176 páginas, papel pólen bold, impressão de alta qualidade e um projeto gráfico que respeita a força do material. Tudo contribui para transformar a leitura em uma experiência imersiva e, por vezes, dolorosa.
Ouroboros não é uma leitura confortável. Não há redenção fácil, nem alívio cômico. É uma história sobre abandono, violência e a dificuldade real de quebrar padrões herdados. Em tempos em que tantas HQs apostam no escapismo, Luckas Iohanathan caminha na direção oposta, usando o quadrinho como ferramenta de confronto e reflexão. Após estrear com O Monstro Debaixo da Minha Cama (Pipoca & Nanquim) e vencer o Prêmio Jabuti 2024 com Como Pedra (também pela Comix Zone), o autor se firma como uma das vozes mais potentes da nova geração de quadrinistas brasileiros.
Leitura recomendada, mas entre sabendo que, ao virar as páginas, você também estará abrindo feridas.
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