Imagine um cenário em que, de uma hora para outra, as histórias da Marvel e da DC desaparecessem das bancas, livrarias e lojas especializadas. Sem novos encadernados do Batman, sem o gibi mensal do Homem-Aranha, sem republicações dos clássicos da editora das lendas ou das sagas cósmicas da Casa das Ideias. E mais: imagine que nenhuma outra editora assumisse essas licenças. O impacto seria imediato — e profundo.
As consequências dessa ausência não se resumiriam à frustração de fãs que acompanham fielmente seus personagens favoritos há décadas. Ela afetaria toda a cadeia do mercado editorial de quadrinhos no Brasil, do leitor casual ao colecionador, das lojas físicas às grandes redes varejistas, e, claro, às editoras que dependem do alto volume de vendas e da visibilidade que os super-heróis proporcionam.
Por mais que o público leitor tenha se diversificado nos últimos anos, os personagens da Marvel e da DC continuam sendo os grandes motores de consumo de quadrinhos no Brasil. Basta visitar uma banca, uma loja geek ou uma livraria para ver o domínio incontestável de heróis uniformizados nas prateleiras. Em números, essas licenças ainda sustentam uma parcela significativa da produção editorial em quadrinhos no país.
Um corte abrupto nessas publicações criaria um vácuo considerável. Muitos leitores que consomem exclusivamente super-heróis ficariam órfãos, o volume de lançamentos cairia drasticamente, e haveria uma retração imediata nas vendas de quadrinhos em geral. Lojas perderiam parte de sua base fiel de clientes e eventos especializados perderiam grandes atrativos.
O maior problema, no entanto, talvez não seja o impacto comercial. É a constatação de que uma parcela significativa do público brasileiro associa a leitura de quadrinhos quase exclusivamente às histórias da Marvel e da DC. E embora essas editoras tenham catálogos icônicos e inegável relevância cultural, o universo dos quadrinhos vai muito além das capas coloridas e das batalhas épicas.
Hoje, o mercado brasileiro oferece uma das cenas editoriais mais diversas do mundo. São dezenas de editoras — grandes e pequenas — publicando obras que exploram todos os gêneros imagináveis: drama, faroeste, ficção científica, terror, fantasia, crítica social, cotidiano, aventura e muito mais. Autores como Manu Larcenet, Craig Thompson, Frederik Peeters, Daniel Clowes, Charles Burns e tantos outros têm obras publicadas em português, muitas vezes premiadas internacionalmente.
Quem lê apenas quadrinhos de super-heróis está deixando de aproveitar uma oferta plural e riquíssima de narrativas gráficas que expandem horizontes, provocam reflexão e emocionam de formas completamente diferentes.
Se as histórias da Marvel e da DC deixassem de ser publicadas no Brasil e não fossem substituídas por nenhuma outra editora, o baque inicial poderia levar a uma retração geral no mercado. Mas há também a possibilidade de um recomeço. Sem o peso dominante dos super-heróis, o público talvez fosse estimulado a explorar outras possibilidades. Editoras independentes ganhariam mais visibilidade. Obras nacionais, muitas vezes ofuscadas pelos lançamentos constantes dos heróis, poderiam conquistar mais leitores. O fã de quadrinhos — e não apenas de super-heróis — teria uma oportunidade única de descobrir narrativas que, hoje, talvez nem imagine que existam.
Não se trata de abandonar os super-heróis, que têm seu valor histórico e cultural garantido. Mas o mercado brasileiro amadureceu, e o leitor tem hoje acesso a uma variedade sem precedentes. Usar os heróis como porta de entrada é ótimo. Permanecer exclusivamente neles, no entanto, é limitar a própria experiência com a nona arte.
Ler quadrinhos é muito mais do que acompanhar o próximo crossover do multiverso. É descobrir o mundo — e a si mesmo — por meio da arte sequencial.
Comentários
Postar um comentário
Você pode, e deve, manifestar a sua opinião nos comentários. O debate com os leitores, a troca de ideias entre quem escreve e lê, é que torna o nosso trabalho gratificante e recompensador. Porém, assim como respeitamos opiniões diferentes, é vital que você respeite os pensamentos diferentes dos seus.