Em outubro de 1998, a Sergio Bonelli Editore lançou uma das séries mais originais de sua história: Júlia – Aventuras de uma Criminóloga. A criação de Giancarlo Berardi — roteirista também responsável por Ken Parker, cultuado western italiano — apresentava uma protagonista diferente de tudo o que se via nas bancas na época: uma criminóloga, jovem, intelectual e sensível, inspirada fisicamente na atriz Audrey Hepburn e psicologicamente moldada pelas referências do romance policial americano e das séries de TV dos anos 1970 e 1980.
No Brasil, a Mythos Editora começou a publicar Júlia a partir de novembro de 2004, com a série passando por diversos formatos e configurações até se estabilizar no que temos hoje: duas séries em formato italiano, uma publicando as histórias mais antigas e a segunda, chamada de Nova Série, focada nas tramas publicadas a partir da edição italiana de número 200. O impacto junto ao público foi imediato: leitores acostumados com o ritmo aventuresco das HQs Bonelli encontraram uma série muito mais cerebral, que privilegiava o suspense psicológico e a investigação minuciosa.
As três primeiras edições de Júlia funcionam como um arco de apresentação não apenas da protagonista, mas também de seus coadjuvantes e, sobretudo, de sua maior antagonista. No número 1, Olhos do Abismo, Júlia Kendall é chamada para colaborar em um caso de assassinatos brutais, conduzindo a investigação com inteligência e sensibilidade. É aqui que surge Myrna Harrod, uma serial killer fria e perturbadora, cuja relação com Júlia ultrapassa o simples confronto entre investigadora e criminosa. A arte é de Luca Vannini, o criador gráfico da personagem, considerado o sucessor de Ivo Milazzo pela crítica italiana – vale lembrar que Milazzo é co-criador de Ken Parker ao lado de Berardi.
A trama continua na segunda edição, intitulada Objeto de Amor, que aprofunda a relação entre Júlia e Myrna. Berardi revela Myrna como um espelho distorcido de Júlia: ambas são inteligentes, intensas e movidas por paixões profundas, mas colocadas em lados opostos da lei. O foco não está apenas em capturar a culpada, mas em compreender a mente de alguém capaz de atravessar todos os limites morais. A arte aqui é de Corrado Roi, um dos mais celebrados ilustradores do universo Bonelli.
A história chega à sua conclusão em Na Mente do Monstro, estabelecendo Júlia como protagonista de um universo rico em nuances e apresentando a serial killer como uma personagem complexa, destinada a retornar em momentos decisivos da série. Myrna Harrod não é apenas uma vilã: é uma presença constante, quase um fantasma que ronda a vida da criminóloga. O argentino Gustavo Trigo é o responsável pela arte deste número.
Berardi bebeu direto da fonte do romance policial de autores como Patricia Highsmith, Ed McBain e Raymond Chandler, além da estética televisiva de Columbo, Cagney & Lacey e Law & Order. Júlia é uma resposta ao excesso de protagonistas masculinos invulneráveis: uma personagem feminina que pensa mais do que age, mas cuja inteligência é a verdadeira arma contra a violência.
Outro ponto central é o diálogo com o realismo. Berardi não apenas estudou profundamente o tema como consultou especialistas em criminologia, psicologia e direito penal para construir uma trama verossímil. Isso dá à HQ um peso documental: a cada caso, o leitor é convidado a entrar no quebra-cabeça junto com Júlia, mas também a refletir sobre as raízes do crime na sociedade.
As histórias trazem um traço realista, detalhado e sempre comprometido com a ambientação urbana. A Nova Jersey fictícia de Garden City é retratada com sombras densas, ruas escuras e cenários cotidianos que poderiam estar em qualquer cidade grande. A inspiração em Audrey Hepburn dá à protagonista uma elegância atemporal, equilibrando delicadeza e força. A arte em preto e branco intensifica o clima noir. Nada é gratuito: os enquadramentos são cinematográficos, o ritmo das páginas alterna investigação calma e explosões de violência, e cada rosto transmite emoção — seja o medo da vítima, a frieza do assassino ou a exaustão de Julia.
As três primeiras histórias de Júlia funcionam como um manifesto e, ao mesmo tempo, como um arco fundador. Elas apresentam Júlia Kendall, constroem seu círculo de apoio e já estabelecem Myrna Harrod como antagonista recorrente, uma serial killer cuja ligação com a protagonista transcende a lógica da investigação e se torna quase pessoal.
No universo Bonelli, Júlia Kendall é a prova de que o crime não precisa ser apenas ação — pode ser também reflexão, análise e humanidade. Para quem gosta de quadrinhos que tratam o leitor como cúmplice da investigação, esses primeiros volumes são um convite irrecusável para adentrar a mente do criminoso — e também a da criminóloga que dedicou sua vida a compreendê-lo.
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