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A Música de Marie, de Usamaru Furuya: entre a fantasia e a crítica ao humano (2022, NewPop)


Publicado originalmente no Japão entre 2000 e 2001, A Música de Marie é uma das obras mais emblemáticas de Usamaru Furuya. No Brasil, o mangá cehgou pela NewPop em 2022, em uma belíssima edição com sobrecapa com detalhes adornados por hot stamp e um cuidado editorial e gráfico primoroso, apresentando-se como uma das edições mais belas do catálogo da editora.

A história se passa em um mundo aparentemente utópico, onde a deusa Marie paira sobre todos como uma guardiã que, com sua música, garante a harmonia e a paz entre os povos. Nesse cenário acompanhamos Kai, um jovem que nutre uma devoção absoluta por Marie, e sua relação com Pipi, sua amiga de infância. A partir dessa premissa, Furuya constrói uma narrativa que mistura fábula, romance e ficção especulativa, ao mesmo tempo em que esconde uma reflexão amarga sobre a natureza humana.

O ponto de virada da trama está justamente no que a figura de Marie representa: um mecanismo criado para conter os impulsos destrutivos da humanidade. Ao longo da história, Furuya conduz o leitor a questionar até que ponto a paz é verdadeira se depende de uma força externa que reprime desejos e violências. Há também uma camada lírica que percorre toda a obra, com a relação entre Kai e Pipi funcionando como contraponto emocional diante da revelação cruel que sustenta o universo onde vivem.



Visualmente, A Música de Marie é um espetáculo. O traço de Furuya é detalhado e inventivo, com cenários que lembram o trabalho de Moebius, inspiração steampunk e uma imaginação arquitetônica quase barroca. Os enquadramentos, sempre ousados, reforçam a sensação de estarmos diante de uma obra que não se limita ao mangá tradicional, mas dialoga com artes plásticas e com a linguagem cinematográfica. Cada página é construída para causar impacto estético e, ao mesmo tempo, carregar significado narrativo.

Os temas que emergem da leitura são pesados: a ilusão da utopia, a repressão do livre-arbítrio, a fragilidade da moral humana, a dependência de mitos e deuses para estruturar sociedades. Tudo isso é tratado sem concessões, em uma história que começa com doçura mas desemboca em uma reflexão melancólica sobre a condição humana. O capítulo final, especialmente, traz revelações que não saem da cabeça mesmo muito tempo após a leitura.

No fim, o que fica é a sensação de ter lido uma fábula que dialoga com o melhor da literatura e da filosofia, embalada em uma estética arrebatadora. A Música de Marie é um mangá que pede releitura, que provoca desconforto e que, justamente por isso, se torna inesquecível.


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