Publicada no Brasil pela Editora Poptopia, Absolution é o segundo título do catálogo da casa — e uma escolha que reafirma a proposta ousada da editora: trazer quadrinhos autorais, provocativos e visualmente impactantes, que se conectam diretamente com os dilemas do mundo contemporâneo. Criada por Peter Milligan (roteiro) e Mike Deodato Jr. (arte), a obra é uma das séries mais comentadas do selo AWA Studios, nos Estados Unidos, e chega ao público brasileiro em uma edição caprichada, com capa dura e cores vibrantes.
A trama parte de uma premissa poderosa. Em um futuro próximo, Nina Ryan, uma assassina profissional, é condenada à morte por seus crimes. Em vez da execução, ela é recrutada para um programa de reabilitação controlado por um sistema de inteligência artificial e transmitido como um espetáculo digital. O público acompanha, em tempo real, suas missões, julgando se suas ações merecem “absolvição” ou punição. Cada like ou voto positivo conta — literalmente — para sua sobrevivência. Se o nível de aprovação cair demais, os explosivos implantados em seu corpo são ativados.
É um conceito que mistura O Sobrevivente e Black Mirror com uma dose generosa de crítica social. Milligan faz aqui uma leitura ácida sobre a cultura da exposição e da validação pública. A linha entre moralidade e entretenimento é completamente dissolvida, e o que resta é um retrato sombrio da sociedade digital — onde a violência, o julgamento e a busca por relevância se tornam formas de espetáculo. Nina é, ao mesmo tempo, vítima e produto desse sistema.
A narrativa alterna entre ação frenética e momentos de reflexão, sem abrir mão do cinismo característico do autor. O ritmo é intenso, mas o roteiro não se limita à adrenalina: há camadas psicológicas e questionamentos éticos que tornam Absolution mais do que um simples thriller futurista. Milligan usa o gênero de ficção científica como veículo para discutir culpa, poder, voyeurismo e a perda da empatia em tempos de superexposição.
A arte de Mike Deodato Jr. é ótima. Dono de um traço preciso e de uma composição cinematográfica de páginas, o artista brasileiro traduz em imagens a tensão constante do texto. Seus enquadramentos fragmentados, o uso expressivo das sombras e a fluidez nas cenas de ação criam um ambiente opressivo e elegante. As cores de Lee Loughridge reforçam essa atmosfera — frias e metálicas nas cenas urbanas, mais quentes e contrastadas nos momentos de clímax. O resultado é uma HQ visualmente arrebatadora, com estética de filme neo-noir digital.
Absolution é uma obra sobre a busca por redenção em um mundo que transformou o julgamento moral em entretenimento. Violenta, estilizada e desconfortavelmente atual, a HQ faz pensar — algo cada vez mais raro no mainstream. A escolha da Poptopia em publicá-la como seu segundo lançamento é emblemática: um título que combina apelo visual, contundência temática e assinatura de dois autores consagrados, apresentando ao leitor brasileiro um quadrinho que conversa diretamente com a era do espetáculo em que vivemos.
Uma leitura intensa, provocadora e visualmente deslumbrante — uma distopia que parece menos ficção e mais um espelho cruel do presente.
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