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O curioso caso dos gibitubers que não leem - ou como a leitura ficou em segundo plano na era do colecionismo


É cada vez mais comum algo que deveria ser incomum: o fenômeno dos gibitubers que não leem. Ao invés de análises sobre quadrinhos, o que domina o YouTube são vídeos de unboxing, estantes imaculadas e takes cuidadosamente montados para exibir coleções. A leitura, que deveria ser o ponto de partida de qualquer conversa sobre HQs, virou quase um detalhe — quando não um obstáculo.

A cena dos gibitubers cresceu muito nos últimos anos, impulsionada pelo aumento do número de editoras, pela onda de relançamentos em formato de luxo e pelo desejo de pertencimento que acompanha o ato de colecionar. Não há problema algum nisso: colecionar é uma paixão legítima, e faz parte da cultura dos quadrinhos há décadas. O problema surge quando a estética substitui o conteúdo. Quando o que era para ser uma troca de ideias sobre roteiros, arte e narrativa visual vira apenas uma vitrine digital.

Muitos canais parecem seguir a lógica do algoritmo mais do que a lógica da leitura. É mais rentável abrir caixas do que discutir a construção de um personagem. É mais fácil filmar o brilho do verniz localizado do que entender a estrutura narrativa de um autor como Alan Moore, René Goscinny ou Jean Van Hamme. A consequência é que o discurso sobre quadrinhos se empobrece — e o público, que muitas vezes chega em busca de boas indicações, acaba encontrando apenas estantes cheias de gibis lacrados e apresentadores com ego inflado, mas pouco a dizer.

O YouTube poderia ser o espaço ideal para o debate sobre quadrinhos. Mas o que se vê, com raras exceções, é uma superficialidade crescente. São vídeos que confundem consumo com conhecimento, quantidade com qualidade, hype com leitura. E enquanto isso, os gibis continuam ali — lacrados, intocados, servindo de cenário para thumbnails.

Falar sobre HQs é mergulhar em universos, personagens e ideias. É refletir sobre o que uma história comunica, como um artista traduz emoções em traços, e o que aquela narrativa diz sobre o mundo. É isso que faz dos quadrinhos uma forma de arte — e não um item de decoração.

A leitura continua sendo o ponto de partida de tudo. E talvez esteja na hora de lembrar disso.

Comentários

  1. Infelizmente muitos youtubers que se propõe especializados em quadrinhos, nem tem ideia do que falam exatamente. Pelo menos não do conteúdo da obra, ainda mais quando se trata de quadrinhos clássicos, dos quais são completamente rasos.

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