Há discos que parecem não caber dentro do seu próprio formato. Sandinista! (1980) é um desses casos: um álbum tão grande em intenção, em alcance e em espírito que mesmo um triplo LP parece pequeno diante do que Joe Strummer, Mick Jones, Paul Simonon e Topper Headon tentaram registrar. Se London Calling (1979) apontou caminhos, Sandinista! abriu portais.
Em 1980, o Clash era uma banda que incendiava a política, transitava entre culturas e observava o mundo com uma curiosidade quase antropológica. Sandinista! nasce dessa inquietação. O título, referência direta ao movimento sandinista da Nicarágua, já anuncia o clima: trata-se de um disco nascido no caldeirão geopolítico da época, mas filtrado pela lente artística de uma banda que enxergava música e militância como territórios complementares.
Logo na abertura, “The Magnificent Seven” estabelece o tom: um funk urbano que antecipa o hip-hop e mostra a banda mergulhando sem medo em novas linguagens. A partir daí, o álbum se desdobra em uma espécie de rádio global, com cada faixa transmitindo uma mensagem, uma textura ou uma lembrança colhida durante a jornada do grupo.
A estrutura de Sandinista! é deliberadamente caótica. É um disco feito para quebrar expectativas. Quando parece que o Clash encontrou um rumo, ele o abandona de propósito. O resultado são momentos brilhantes. “Hitsville UK” é pop despretensioso e contagiante, conduzido por Mick Jones. “Police on My Back” é explosiva, direta ao ponto, um dos grandes covers da história da banda (a gravação original é dos também ingleses The Equals). Já “The Call Up” é reflexão política embalada por um groove irresistível, enquanto “Washington Bullets” é uma crítica internacionalista construída sobre bases latinas. “Charlie Don’t Surf” soa atmosférica e cinematográfica, e, por fim, “Junco Partner” e “One More Time” são mergulhos profundos no reggae e no dub que tanto influenciaram o grupo.
O álbum funciona como uma colagem sonora. Há momentos em que esse excesso brilha, revelando uma banda sem amarras, e há outros em que a dispersão se impõe, criando faixas mais experimentais, mais importantes como documento do que como canção. Mas esse é justamente o ponto: Sandinista! não busca ser um disco “redondo”. Ele busca ser honesto com a avalanche de ideias que o Clash carregava naquele momento.
O choque era inevitável. Nos EUA, críticos enxergaram coragem, amplitude e ousadia. Já no Reino Unido, a reação foi mais dura, apontando descontrole e falta de foco. Mas o tempo tem o hábito de corrigir leituras apressadas, e hoje Sandinista! é visto como um dos trabalhos mais visionários da virada dos anos 1980 e como um gesto artístico que poucas bandas daquele porte ousariam realizar.
A grandeza de Sandinista! não está apenas nas músicas, mas no gesto. O Clash exigiu que o álbum triplo fosse vendido pelo preço de um LP duplo, abrindo mão de royalties para garantir que o disco circulasse. Isso diz tudo sobre a intenção da banda: as ideias importavam mais do que o lucro. Assim, Sandinista! funciona como manifesto: de liberdade criativa, de mistura cultural, de curiosidade política. Um álbum que diz: é assim que soa uma banda quando nenhuma barreira é colocada entre intenção e execução.
Ouvir Sandinista! hoje é aceitar que algumas obras não nascem para caber em molduras. É um disco que desafia, irrita, encanta e surpreende, às vezes tudo na mesma faixa. É prolixo, indisciplinado e absolutamente vivo. E justamente por isso é tão fascinante. Sandinista! contém tudo o que o Clash tinha dentro de si naquele momento: a fome de mundo, a inquietação social, o experimentalismo radical e a recusa firme em repetir a si mesmo. É um álbum que cresce a cada retorno. Um labirinto que recompensa quem decide explorá-lo.
No fim das contas, Sandinista! é o Clash em seu estado mais puro: não o mais conciso, não o mais acessível, mas o mais livre. E liberdade, especialmente no rock, sempre vale a viagem.


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