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Ritchie Blackmore’s Rainbow (1975): Blackmore, Dio e a busca por um novo idioma musical

Ritchie Blackmore’s Rainbow (1975) merece ser observado com mais atenção do que o simples rótulo de “álbum de estreia”. Trata-se, na prática, de um disco de ruptura e reconstrução. Blackmore não estava apenas montando uma nova banda após o Deep Purple: ele estava reorganizando sua própria linguagem musical, filtrando excessos do hard rock baseado no blues e abrindo espaço para uma abordagem mais imagética, quase narrativa. Diferente do Deep Purple, onde riffs e solos disputavam protagonismo, aqui Blackmore parece interessado em criar cenários sonoros . As músicas não são apenas tocadas, elas sugerem lugares, épocas e estados de espírito. Isso fica evidente em “Sixteenth Century Greensleeves”, onde o flerte com melodias tradicionais e escalas de inspiração renascentista não soa como ornamento, mas como estrutura. Ronnie James Dio é peça central nesse processo. Sua performance vai além da potência vocal: há intenção dramática em cada frase. Dio canta como quem conta histórias antiga...
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Purple (2015): Baroness e a arte de sobreviver sem perder a identidade

O quarto álbum do Baroness soa como um trabalho de reconstrução artística e emocional sem jamais cair no discurso fácil da superação. Aqui, o grupo olha para frente, mas sem apagar as marcas do caminho. Após o grave acidente de ônibus sofrido em 2012, que interrompeu abruptamente a turnê de Yellow & Green (2012) , havia uma expectativa quase inevitável de que o Baroness retornasse mais cauteloso ou introspectivo. Purple (2015) confirma essa leitura apenas em parte. O álbum é mais direto, mais melódico e, em vários momentos, mais acessível, mas não menos intenso. A diferença está na forma como o peso é apresentado: menos esmagador, mais fluido. A produção de Dave Fridmann faz toda a diferença. O som ganha espaço, camadas e uma sensação quase aérea, que contrasta com a densidade típica do sludge metal que marcou os primeiros trabalhos da banda. Canções como “Chlorine & Wine” e “Shock Me” apostam em refrães fortes e linhas vocais memoráveis, algo que antes surgia de maneira mai...

Mudanças de voz, mudanças de rumo: o Angra em Secret Garden (2014)

Secret Garden (2014) ocupa um lugar peculiar na discografia do Angra. Lançado no fim de 2014 no Japão e no início de 2015 no restante do mundo, o álbum representa, ao mesmo tempo, um encerramento e um recomeço. É o último registro de estúdio com Kiko Loureiro antes de sua saída para o Megadeth, e o primeiro com Fabio Lione nos vocais e Bruno Valverde na bateria. Esse caráter de transição ajuda a explicar tanto os acertos quanto as irregularidades do disco. Produzido por Jens Bogren, com pré-produção de Roy Z, Secret Garden aposta em um som moderno, limpo e poderoso, alinhado ao que havia de mais sofisticado no metal melódico da época. As guitarras de Kiko Loureiro e Rafael Bittencourt seguem técnicas e cheias de detalhes, com solos precisos e riffs que equilibram peso e melodia. A cozinha formada por Felipe Andreoli e Bruno Valverde garante solidez, ainda que o álbum não busque, em momento algum, a agressividade extrema. A estreia de Fabio Lione é um dos pontos mais debatidos. Se...

Hunky Dory (1971): o elo perdido entre o início e o mito de David Bowie

Hunky Dory (1971) é o disco em que David Bowie, definitivamente, encontra a própria voz. Não apenas no sentido literal, mas artístico, conceitual e estético. O álbum deixa para trás as tentativas ainda fragmentadas do fim dos anos 1960 e aponta com clareza para o artista que, poucos meses depois, redefiniria os limites do rock com The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972). Diferente do impacto visual e do peso elétrico que marcariam Ziggy , Hunky Dory é, acima de tudo, um disco guiado pelo piano. As composições se apoiam fortemente nesse instrumento, criando uma atmosfera mais íntima, teatral e, ao mesmo tempo, sofisticada. É um álbum de canções no sentido mais clássico do termo, mas que já carrega em suas entrelinhas a inquietação artística e a ambiguidade que se tornariam marcas registradas de Bowie. Logo na abertura com “Changes” , Bowie apresenta o tema central do disco: transformação. A canção é quase um manifesto, tanto lírico quanto musical, sob...

Eric Clapton e a arte da contenção em Slowhand (1977)

Slowhand (1977) costuma ser citado como o álbum que consolidou, de forma definitiva, a carreira solo de Eric Clapton nos anos 1970. Entre o impacto mais imediato de 461 Ocean Boulevard (1974) e projetos posteriores menos consensuais, este disco representa o ponto em que Clapton encontra um equilíbrio raro entre identidade artística, apelo popular e maturidade musical. Produzido por Glyn Johns, Slowhand aposta em uma estética limpa, direta e sem excessos. A produção evita camadas desnecessárias e coloca a guitarra de Clapton sempre a serviço da canção, não da pirotecnia. O famoso “menos é mais” aqui não é discurso: é método. Cada frase soa pensada, cada silêncio tem peso, e o timbre seco, quente e muito bem definido ajuda a explicar por que o álbum envelheceu tão bem. O disco navega com naturalidade entre blues, rock e pop sofisticado. “Cocaine”, composição de J.J. Cale, abre o álbum com uma confiança quase displicente, sustentada por um groove econômico e irresistível. Já “Lay D...

Axis: Bold as Love (1967): o momento em que Jimi Hendrix assume o controle do próprio universo

Entre o impacto imediato de Are You Experienced (1967) e a ambição quase sem limites de Electric Ladyland (1968) , Axis: Bold as Love (1967) costuma ocupar um lugar curioso na discografia de Jimi Hendrix. Para alguns, é o “disco do meio”. Porém, ele é justamente o ponto em que Hendrix começa a dominar por completo o próprio universo criativo não mais apenas como guitarrista revolucionário, mas como compositor, arranjador e arquiteto sonoro. Axis aprofunda a psicodelia apresentada no debut, mas faz isso de forma mais controlada, quase elegante. Há menos urgência juvenil e mais consciência estética. A guitarra continua sendo o centro de tudo, claro, mas agora ela serve às canções, às melodias e às atmosferas, e não apenas ao choque imediato. Logo na abertura, “Up from the Skies” deixa claro que este não será um disco de explosões constantes. O clima etéreo, o groove quase jazzístico e o uso criativo do wah-wah mostram um Hendrix interessado em textura, espaço e sutileza. “Spanish ...

Um passo fora do óbvio: V (1991) e a maturidade da Legião Urbana

V (1991) ocupa um lugar peculiar e muitas vezes incompreendido na discografia da Legião Urbana. Vindo na sequência direta de As Quatro Estações (1989) , um dos maiores sucessos comerciais da música brasileira, o álbum soa menos como uma tentativa de continuidade e mais como um gesto deliberado de ruptura. Aqui, a banda desacelera, fecha-se em si mesma e entrega um disco introspectivo, denso e, em vários momentos, desconfortável. O Brasil atravessava um período de instabilidade econômica e Renato Russo vivia uma fase pessoal extremamente delicada. Essas tensões não aparecem de forma explícita ou panfletária, mas permeiam todo o álbum, seja na atmosfera melancólica, seja na sensação constante de desgaste emocional. V não busca catarse fácil nem refrões feitos para o rádio: ele exige tempo, atenção e disposição do ouvinte. Trata-se de um dos trabalhos mais ousados da Legião. As canções se estendem, os arranjos ganham camadas pouco usuais e há uma clara intenção de explorar climas qu...

London Calling (1979): quando o The Clash expandiu o punk para além dos próprios limites

Lançado no apagar das luzes de 1979, London Calling é o disco em que o The Clash se torna uma das vozes centrais da música popular do fim do século 20. Ainda carregado de urgência, ruído e confronto, o álbum amplia radicalmente o vocabulário do grupo, incorporando reggae, ska, rockabilly, R&B e pop sem jamais soar disperso. Ao contrário, tudo parece guiado por uma mesma tensão: a sensação de que algo estava ruindo social, política e culturalmente, e precisava ser narrado com clareza e força. A produção de Guy Stevens contribui para esse clima quase caótico, com um som cru, vibrante e frequentemente à beira do colapso. Não há polimento excessivo nem concessões estéticas óbvias. O que se ouve é uma banda tocando como se cada faixa fosse urgente demais para esperar. Joe Strummer canta como um cronista do fim de uma era, Mick Jones equilibra melodia e aspereza, e a dupla Paul Simonon e Topper Headon constrói a base rítmica que permite ao disco transitar com naturalidade entre estilo...

Ascension (2025): o Paradise Lost em sua forma mais consciente

Poucas bandas conseguiram atravessar três décadas de metal extremo, mudanças de cena e transformações tecnológicas sem diluir completamente a própria identidade. O Paradise Lost é uma dessas exceções. Em Ascension (2025), seu 17º álbum de estúdio, o grupo não apenas reafirma essa identidade como demonstra um entendimento raro de seus próprios limites e, principalmente, de suas forças. Lançado pela Nuclear Blast, o álbum se insere diretamente na fase mais coesa da discografia recente da banda, iniciada com The Plague Within (2015). Desde então, o Paradise Lost vem operando em um território muito específico: a síntese entre o peso do doom/death inicial e a sofisticação melódica adquirida nos anos 1990, sem recaídas nos excessos eletrônicos ou industriais que marcaram parte da produção dos anos 2000. Ascension aprofunda essa equação, mas o faz de maneira menos agressiva e mais contemplativa do que seus antecessores imediatos. A produção de Greg Mackintosh é central para essa leitur...

Por que colecionamos? Uma viagem pela história, pela mente e pela paixão por objetos

Colecionar é um hábito tão antigo quanto a própria civilização. Muito antes de existir a ideia moderna de coleção, o ser humano já reunia objetos raros, simbólicos ou simplesmente belos como forma de preservar memória, afirmar identidade e dar sentido ao mundo ao redor. O colecionismo não nasceu da necessidade humana de ordenar, contar histórias e criar vínculos. Do ponto de vista histórico, o ato de colecionar pode ser rastreado até a Antiguidade, quando reis e sacerdotes reuniam relíquias, artefatos religiosos e tesouros de guerra. Já na Europa do Renascimento surgiram os famosos Gabinetes de Curiosidades, espaços privados onde aristocratas e estudiosos organizavam fósseis, obras de arte, instrumentos científicos e objetos exóticos vindos de outras partes do mundo. Esses gabinetes não apenas expressavam poder e conhecimento, como também lançaram as bases dos museus modernos. Mas por que esse impulso persiste até hoje? A psicologia ajuda a explicar. Estudos e análises contemporâne...