O baú de David Bowie


Por Emílio Pacheco
Jornalista e Colecionador
Especial para a Collector´s Room
Blog do Emílio Pacheco

Desde que interrompeu a turnê Reality em 2004 em razão de um ataque cardíaco, David Bowie nunca mais gravou discos ou fez shows. Ainda participa no trabalho de outros como músico e ator, e teve uma notável aparição no DVD Remember that Night, do xará David Gilmour. Mas sua carreira musical está em recesso. Aposentadoria? Por que não? Ele está com 63 anos, a saúde inspira cuidados e ainda existe uma filha de nove anos para lhe exigir atenção. Sua obra é imensa e riquíssima, de forma que sua missão como artista está mais do que cumprida.

Mas os fãs ficam inquietos. Então a melhor forma de acalmá-los é com relançamentos especiais. É bem verdade que o material inédito que todos querem ainda está bem guardado. Em 1999, em entrevista exclusiva para o International Magazine, Bowie prometeu uma coletânea tipo Anthology, com gravações nunca antes ouvidas "nem em mp3". Estamos esperando até hoje. Como prêmio de consolação, saíram várias edições de luxo de álbuns antigos ou shows mais ou menos manjados. É o suficiente para manter os colecionadores ocupados e, por que não dizer, felizes. Os CDs mais interessantes desse período são comentados a seguir, na ordem cronológica das gravações originais e não dos (re)lançamentos.


O primeiro LP de David Bowie, de 1967, é justamente a edição especial mais recente: foi lançada em fevereiro, na Inglaterra, pela ótima série "Deluxe Edition". Esse disco é um item curioso na discografia do cantor. Não importa se você o conheceu no auge da fase roqueira de 72-74, no período experimental de 77, no apogeu da popularidade com Let's Dance em 83 ou na retomada de trabalhos mais arrojados a partir dos anos 90: o álbum irá surpreendê-lo. O estilo não é rock, pop, soul ou nada parecido. Bowie estreou em vinil de 12 polegadas como um intérprete de canções melodiosas típicas de musicais ou de festivais europeus dos anos 60. Mas o sarcasmo e o humor negro das letras dão o toque kitsch. E para não deixar dúvidas de que Bowie não pretendia ser um ídolo brega, a última faixa se chama "Please Mr Gravedigger" ("Por Favor, Sr Coveiro") e é cantada à capela com ruído de chuva e escavação ao fundo. Para um novato, até era uma proposta ousada. Por isso mesmo, foi um fracasso de vendas. Por muito tempo se acreditou que tivesse sido o empresário Ken Pitt quem empurrou Bowie nessa direção, mas o próprio desmentiu essa versão em seu livro David Bowie, a Pitt Report, enfatizando que a decisão de adotar um estilo semelhante a Anthony Newley e Tommy Steele foi "de David e somente de David".

O CD duplo traz o LP original em mono e estéreo no CD 1 e raridades diversas no CD 2. Algumas faixas saíram exclusivamente em single, como "The London Boys" e "The Laughing Gnome". Outras haviam aparecido pela primeira vez na coletânea The World of David Bowie de 1969, que foi lançada no Brasil em 1974 com o nome de Disco de Ouro. Com esse título, muitos fãs brasileiros pensaram que fosse uma compilação de sucessos. Curiosamente, as três inéditas desse LP nasceram de uma tentativa consciente de Bowie em compor "essas porcarias que fazem sucesso". "Let Me Sleep Beside You" e "In the Heat of the Morning" ficaram na vala comum do pop europeu mais apelativo, mas "Karma Man" poderia entrar em qualquer de seus melhores discos do começo dos anos 70. Considerando que o futuro hit do Mott the Hoople, "All the Young Dudes", também foi composto por Bowie como um esforço proposital de criar um sucesso, presume-se que ele deve ter feito isso por diversas vezes em sua carreira. E sempre com ótimos resultados.

O CD 2 inclui ainda as gravações feitas pelo trio Feathers para o filme Love You Till Tuesday de 1968, uma sequência de clips produzida por Ken Pitt. Os Feathers eram Bowie, sua namorada Hermione Farthingale e o amigo John Hutchinson. Talvez por falta de espaço, não entrou a primeira versão de "Space Oddity", de forma que você ainda precisa da coletânea Deram Collection e/ou do CD London Boy, que inclui uma mixagem mais longa e rara. Em compensação, entraram "When I'm Five" e a gravação completa de três estrofes de "Ching-a-Ling", que até então só estavam disponíveis no CD Love You Till Tuesday do selo inglês Pickwick, fora de catálogo. Aparece também a versão de 1968 de "London Bye Ta Ta", embora numa mixagem diferente e, na minha opinião, inferior à que consta no bootleg The Forgotten Songs of David Robert Jones. Outras novidades são "The Laughing Gnome", "The Gospel According to Tony Day", "Did You Ever Have a Dream", "Let Me Sleep Beside You" e "Karma Man" pela primeira vez em estéreo, além de uma sessão da BBC com "Love You Till Tuesday", "When I Live My Dream", "Little Bombardier", "Silly Boy Blue" e "In the Heat of the Morning", essa última com arranjo barroco e letra diferente da que sairia em disco (e também na coletânea Bowie at the Beeb).


O mesmo formato de CD duplo foi usado para o relançamento do segundo LP de David, de 1969. Inclusive, ambos vêm com um livreto assinado pelo mesmo autor, Kevin Cann, especialista em David Bowie e autor de David Bowie, a Chronology. Também o título dos dois é apenas David Bowie, mas o segundo é mais conhecido pelo nome com que foi relançado por diversas vezes: Space Oddity. Esse relançamento de 2009 (edição comemorativa de 40 anos) resgata a capa original, apenas com a indicação do intérprete. "Space Oddity" foi o primeiro sucesso de Bowie e acabou saindo em compacto no Brasil em 1970, tornando-se o primeiro disco do cantor lançado neste país. É uma música forte e envolvente, num estilo que lembra Bee Gees da fase pré-disco.

De todos os álbuns de Bowie, esse é o único que não traz um projeto musical definido. Simplesmente apareceu a chance de gravar o segundo disco e o cantor aproveitou as músicas que já estavam prontas. Algumas eram remanescentes de um trabalho folk que ele havia desenvolvido com John Hutchinson, outras apontavam para sua nova direção. Duas faixas chamam a atenção por serem as únicas canções de amor e fossa que Bowie gravaria em toda a sua carreira. Ele voltaria a compor temas românticos, mas nunca de forma tão pungente e sincera quanto em "Letter to Hermione" e "An Occasional Dream". A tristeza pelo fim do relacionamento com Hermione inspirou duas letras profundamente sofridas. "Letter to Hermione" chega a antecipar algumas imagens que Roberto Carlos usaria em "Detalhes", como: "quando vocês se beijam é algo novo / mas você nunca chamou meu nome / só por engano?". Já "Cygnet Committee", "Wild-Eyed Boy From Freecloud" e "Memory of a Free Festival" são longas e majestosas suítes. O CD 2 traz demos, faixas de singles da época, a regravação de 1970 de "London Bye Ta Ta" e a versão em italiano de "Space Oddity", rebatizada de "Ragazzo Solo, Ragazza Sola". Algumas dessas raridades já haviam saído na caixa Sound and Vision, mas é bom tê-las num CD duplo com material todo da mesma época.


O show de David Bowie no Santa Monica Civic Auditorium em 1972 foi transmitido ao vivo em FM e se tornou um dos mais lendários bootlegs dos anos 70. A edição em vinil vermelho do selo Trade Mark of Quality era um must para os colecionadores. Ainda mais considerando a escassez de registros ao vivo de Bowie na chamada fase Ziggy, com o guitarrista Mick Ronson e a banda Spiders From Mars (a trilha do filme Ziggy Stardust, The Motion Picture só sairia em 1983). Na era do CD, a gravação chegou a ser lançada oficialmente pelo selo Trident em 1994 na Inglaterra e Griffin em 1995 nos Estados Unidos. Mas nada que tenha saído por essas gravadoras é reconhecido como oficial por Bowie. Sempre que alguma faixa desses CDs reaparece em lançamentos autorizados, é identificada como "inédita". Assim sendo, em 2008 a Virgin lançou o CD David Bowie Live in Santa Monica '72 contendo o "show inédito". A cover de "Waiting for the Man", do Velvet Underground, já tinha constado na trilha sonora de Quase Famosos em 2000.


Outro bootleg manjadíssimo que acabou ganhando lançamento oficial foi o show de Montreal da turnê Glass Spider, de 1987. Saiu em 2007 numa edição casada com o relançamento do vídeo homônimo em DVD (embora os shows em CD e DVD não sejam os mesmos). A gravação tinha sido disponibilizada em CD para as rádios para transmissão no programa King Biscuit Flower Hour. A faixa "Bang Bang" chegou a ser incluída num CD promocional de quatro faixas da EMI. O interesse maior é pelas músicas que não entraram no vídeo. E são todas ótimas. "Scary Monsters" ganha um arranjo mais vibrante, lembrando o último single de Bowie, "New Killer Star". "All The Madmen" começa com trechos falados alternadamente em inglês e espanhol e cresce num bloco sólido de som, bem diferente da gravação original. "Big Brother" é uma bem-vinda amostra do álbum Diamond Dogs, de 1974. De Never Let Me Down, que era o álbum mais recente, ouvem-se a apenas razoável "'87 and Cry" (registrando o ano do disco e do show) e a melhorzinha "Beat of Your Drum".


Em 1999, após finalizar o álbum hours..., Bowie participou do programa Storytellers, da VH1. "China Girl" entrou numa coletânea em DVD, mas a apresentação completa só saiu em CD e DVD no ano passado. Além de músicas do disco novo, que ainda não havia chegado às lojas, Bowie tinha uma surpresa: resgatou "Can't Help Thinking About Me", de 1966, do tempo em que era acompanhado pelo grupo Lower Third. Desde os anos 70 ele nunca cantava nada anterior a 1969. A plateia foi composta de 50 fãs escolhidos por sorteio entre os sócios da BowieNet que desejassem se inscrever. Um dos felizardos foi o saudoso jornalista Laszlo Varga, de São Paulo, que depois escreveu uma matéria a respeito para a Isto É.


Por fim, a apresentação de 2003 em Dublin, na Irlanda, que já tinha sido lançada em DVD, chega ao CD quase sete anos depois, em janeiro deste ano. A capa é a mesma. O repertório inclui três faixas novas, no caso, "Fall Dog Bombs the Moon", "Breaking Glass" e "China Girl". É um ótimo show, com Bowie em plena forma, mostrando um repertório vigoroso e diversificado. Aliás, ele é um raro artista veterano, talvez o único, que faz questão de sempre renovar seus shows, fugindo à tradicional fórmula de apresentar uma ou duas músicas do disco mais recente e preencher o resto com sucessos antigos. Sim, ele canta clássicos como "Rebel Rebel", "Life on Mars?", "Ashes to Ashes", "Changes", "Heroes" e "Ziggy Stardust". Mas o público é devidamente atualizado ao ouvir "New Killer Star", "Reality", "Afraid", "Sunday", "Never Get Old", "Bring Me the Disco King" e "Heathen (The Rays)". Esperamos que este não seja o último registro de David Bowie como um artista em plena atividade. Mas se for, não tem problema: ele parou enquanto estava com todo o gás. E assim será lembrado.

Comentários

  1. Um dos meus sonhos é ver Bowie pessoalmente e dizer para ele o quanto admiro seu trabalho. O primeiro disco do Bowie é muito bom, e as "suítes" de Space Oddity são exemplos claros de como o cara é genial. Bela matéria

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  2. Excelente texto do Emílio. Matérias como essa dão gosto e gás para manter a Collector´s Room ativa todos os dias.

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  3. Eu nunca consegui curtir muito o trabalho de Bowie a não ser na fase Ziggy. Sei perfeitamente que a culpa é exclusivamente minha, pois quem fez o que ele já fez no mundo da música merece ser taxado no mínimo de "gênio". Mas mesmo não sendo fã do cara, gostei muito da matéria, que disseca bem esse lote de discos, dando as devidas explicações ao "consumidor" ao invés apenas de "puxar o saco" da obra do artista. Excelente texto.

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  4. Gosto muito do David Bowie, mas confesso que este é um dos artista que gosto e não tenho nada. Só MP3. Preciso começar a comprar alguma coisa. O foda é que o cara tem um discografia muito extensa. Vou atrás desse Space Oddity, que é maravilhoso e também o Ziggy Stardust.

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  5. Eu tenho todos, hehehe, e em vinil, hehehehe (quanta bobagem!!!!)

    Aconselho a trilogia (aliás, to pensando em fazer um Bau só sobre a trilogia)

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