Discoteca Básica Bizz #017: Robert Johnson - King of the Delta Blues Singers (1961)


No quarto de um hotel de segunda, em San Antonio, Texas, o garoto negro, alto, magro e elegante senta-se voltado para a parede. Um enorme microfone à sua frente, o violão de aço National-Steel sobre o joelho. Um fio corre pelo chão de madeira até o outro quartinho, onde, concentrados, atentos, maravilhados, dois homens brancos de meia-idade manipulam pesados gravadores de rolo. 

Faz frio, uma fria noite de novembro de 1936. Olhos fechados, o garoto toca - alguém na sala de controle comenta que não é possível: deve haver mais alguém com ele no quarto. Como é que estamos ouvindo acompanhamento e solo ao mesmo tempo? Mais que isso - que tristeza, que tristeza infinita, que doçura angustiada nessas cordas. O garoto canta, uma voz aguda e ligeiramente fanhosa, e a primeira impressão é de transe, trânsito, fuga, como capturar o vento. Depois, abre-se um universo escuro, um poço das mais absolutas paixões - cada blues é curto, curto, dois minutos e pouco, cantado como quem perseguisse ou fosse perseguido. Nem amor, nem desejo, nem desespero: um pouco de cada uma dessas emoções e mais alguma outra coisa. Alguma coisa que remonta à mais básica humanidade, fatalidade, destino, morte.

O garoto é Robert Johnson, 25 anos, nascido (presumivelmente) no vilarejo de Hazelhürst, Mississipi. Os homens são o pesquisador John Hammond e o então diretor artístico da gravadora Columbia, Don Law. O que eles estão gravando é a primeira parte do único registro da obra do virtual cristalizador do blues moderno. Um ano depois, num "estúdio" improvisado no galpão de um prédio em Dallas, Texas, Hammond e Law fariam uma segunda sessão.

Quando, cinco meses depois, Hammond desceu de Nova York ao sul em busca de Johnson para um grande concerto de blues programado para o Carnegie Hall, voltou apenas com a notícia: ele morrera em circunstâncias misteriosas, aos 27 anos, possivelmente assassinado por veneno, por alguma amante vingativa ou por algum marido ciumento. Isso é blues, baby.


Os dois LPs obtidos dessas sessões são, até hoje, os mais importantes discos de blues que existem. Álbuns de cabeceira de Eric Clapton, Jimmy Page, Jeff Beck, John Mayall, Pete Townshend, Ron Wood, Keith Richards, Mick Jagger, Elvis Costello, Nick Cave. Neles estão blues gravados infinitas vezes por artistas contemporâneos - "Love in Vain", "Crossroads Blues", "Terraplane Blues", "Me and the Devil Blues", "Ramblin' on My Mind", "Stop Breaking Down". Estão neles, também, dezenas de licks - fraseados solistas da guitarra - e riffs - séries de compassos rítmicos -, copiados nota a nota, milhares de vezes, por dúzias de músicos de blues, de jazz, de heavy metal, de rhythm and blues, de rock, de todas as tendências. E está nesses discos, sobretudo, uma das poesias mais intensas e ousadas da história da cultura popular internacional. 

Clichê algum descreve a negra lira de Robert Johnson. Não se trata de "lamento de raça", não se trata de "hino da salvação", não se trata de "lirismo popular". Trata-se de um mergulho sem amarras nos mais escuros desvãos da alma humana, lá onde mora o verdadeiro devil, o que comercia com as paixões, propõe negócios irremediáveis e não aceita tréguas. Havia uma lenda, já durante o tempo em que Johnson vivia, de que ele teria feito um "pacto com o diabo" em troca de seu notável talento com a música e sucesso com as mulheres. Vista de outro ângulo, a lenda vive: era com seu mais íntimo diabo, aquele que o mundo branco das leis e das normas trata de suprimir, que ele dialogava em seus blues.

E em seus blues resume-se sua biografia. Robert Johnson nasceu, amou, tocou, morreu. No espaço de 27 anos. Nos dois minutos de um blues.

(Texto escrito por Ana Maria Bahiana, Bizz #017, dezembro de 1986)

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