Conservadora, saudosista e bairrista: por que a cena heavy metal no Brasil é assim?



O texto publicado pela Overload - leia aqui - aponta várias questões importantes sobre a cena de heavy metal aqui no Brasil. Estão lá vários problemas que todo mundo que ouve música pesada em nosso país está cansado de saber: o conservadorismo do público, a resistência à novas bandas, a aversão a sonoridades atuais e modernas (como se existisse apenas uma maneira de se fazer heavy metal), imprensa “especializada" desatualizada (“especializada" com aspas mesmo porque, convenhamos, escrever e cobrir apenas aquilo que vai ao encontro do gosto pessoal da equipe que produz uma revista ou um site está longe de ser especializado) gerando ouvintes também desatualizados com o que está acontecendo no mundo do metal em todo o planeta, tendências sonoras que já estão consolidadas lá fora chegando às bandas brasileiras com um enorme atraso - o que não faltam são sintomas disso tudo.

Mas por que o público de metal aqui no Brasil possui um ouvido tão conservador? Qual é a raiz disso tudo? De onde vem essa aversão pelo novo, pelo atual, pela evolução, presente em uma parcela significativamente grande do público metalhead brasileiro? É algo bem difícil de responder, e cujas motivações passam por diversos fatores.

Vamos voltar algumas décadas no tempo. O metal explodiu no Brasil em 1985, através do Rock in Rio. Tocaram na primeira edição do festival nomes como Iron Maiden, AC/DC, Ozzy Osbourne e Scorpions, tirando das sombras uma comunidade que já existia e, ao mesmo tempo, mostrando que havia uma alternativa para quem curtia música mas não se identificava com o que era popular naquela época - em grande parte, as bandas nacionais da década de 1980. Em um mundo sem internet, MP3 e serviços de streaming de música (acredite, isso já  aconteceu), foi através do Rock in Rio que toda uma geração teve contato com o gênero que iria fazer parte de suas vidas. Isso está documentado e afirmado em diversas entrevistas, documentários e matérias, atestando o quão importante o RiR 1985 foi para uma geração.

A então já existente Rock Brigade, que começou a circular como um fanzine em 1982, desenvolveu sua linguagem gráfica e editorial, aprofundou o seu conteúdo e se transformou na principal e única revista brasileira especializada em heavy metal, protagonismo que permaneceu durante anos. E foi através de suas páginas que nós, brasileiros daquele tempo, ficamos conhecendo inúmeras bandas. O sucesso, a força e a influência da Rock Brigade eram tão grandes que a revista passou a ter um selo próprio, a Rock Brigade Records, encarregado de lançar em nosso mercado muitos daqueles nomes tão elogiados em suas páginas. Ainda que, para um observador mais crítico e atento, o declínio do império de Antônio Pirani tenha iniciado justamente com a chegada do selo (pouco a pouco a revista foi perdendo credibilidade junto aos leitores, que começaram a perceber que todo disco lançado pela Rock Brigade Records era incensado pelos redatores, enquanto as bandas que não faziam parte do cast da gravadora, mesmo sendo aclamadas mundo afora, eram recebidas a pontapés pela redação da RB), o fato é que a Rock Brigade sempre apostou em uma linha editorial alinhada com o que estava acontecendo no segmento musical que ela cobria. A revista sempre apostou em novidades, não soando nada conservadora em suas pautas. Lembro perfeitamente do impacto de algumas capas de edições lançadas durante a década de 1990 e 2000 trazendo nomes como Alice in Chains, Ramones, Evanescence, Rage Against the Machine, Slipknot, Raimundos e outros, que foram recebidas com ojeriza por uma parcela de leitores por não serem bandas do “verdadeiro metal”. Mas os caras tentavam apresentar ao leitor novas sonoridades, isso era inegável.


Com o lento declínio da Brigade e o surgimento da Roadie Crew, as coisas mudaram de figura consideravelmente. Aquele público que descobriu o metal em meados da década de 1980, que transgrediu o senso comum ao preferir Iron Maiden ao invés de Legião Urbana, cresceu e começou a escrever sobre música. E trouxe junto um inexplicável apego à sonoridades e nomes considerados clássicos, ignorando até os limites do possível tudo que trouxesse o mínimo traço de evolução e modernidade. Uma contradição enorme em se tratando de um gênero que sempre foi marginalizado e que, pelo menos aqui em nosso país, ganhou popularidade por ser a alternativa que os jovens da década de 1980 encontraram para ir contra o senso comum de sua geração. Antes transgressores, agora adultos esses metaleiros assumiram postos no mercado de trabalho, incluindo o jornalismo cultural, e mostraram uma visão conservadora na forma de ouvir música, totalmente contrária à história do próprio gênero que consomem.

Dois exemplos claros desta postura: Mastodon e Trivium, bandas consolidadas e com públicos gigantescos lá fora, até hoje não foram capa da Roadie Crew. É possível ser ainda mais emblemático: o Slipknot, que é gigantesco em todo o planeta e atrai dezenas de milhares de fãs em todo show que faz em qualquer país, nunca esteve na capa da revista - Korn e System of a Down são exemplos similares. Nomes importantes, fundamentais e populares nos últimos anos como Opeth, Disturbed, Avenged Sevenfold, Gojira, Five Finger Death Punch, Bring Me The Horizon, Asking Alexandria e outros, também nunca tiveram essa “honraria”. É o esquema Iron Maiden/Black Sabbath/Metallica, com um Kiss, um Megadeth e um Slayer pra dar uma variada de vez em quando, em um trabalho feito sob medida para o ouvinte conservador. A coisa chega ao ápice de uma realidade imaginativa e da falta de bom senso ao percebermos que bandas como Manowar e Helloween, que foram importantes e influentes no passado mas que não gravam nada digno de nota há anos, seguem sendo vendidas pela revista como algo digno de ser apreciado pelo seu público. 

Isso sem falar na enorme quantidade de indivíduos que fazem parte da redação da Roadie Crew e exercem também a função de agentes de bandas ou são donos de assessorias de imprensa. Afinal, imparcialidade é apenas um detalhe, não é mesmo?

Aqui dá pra fazer um paralelo com a Rock Brigade e o caso dos Ramones. Há pouco tempo atrás, era discussão séria na seção de cartas da Roadie Crew a possibilidade dos Ramones estamparem uma capa da publicação ou terem uma matéria dedicada a eles em suas páginas. Uma visão bem radical e xiita do que é e do que não é digno de estar em uma publicação “especializada" em heavy metal, compartilhada por leitores e jornalistas. 

É claro que cada veículo possui a sua linha editorial e baseia suas decisões nisso. O próprio fato de a única publicação dedicada ao heavy metal que temos no mercado brasileiro ser tão conservadora apenas reflete o modo de pensar do mercado, que também é. Mas a decisão consciente de seguir com essa abordagem não é sadia a longo prazo. Nesse ponto, vale a pergunta tão comum nos cursos de jornalismo: qual é o papel da imprensa? Vamos reformulá-la para ficar mais alinhado com o que estamos discutindo: afinal, qual é o papel da imprensa musical?


Acredito que não seja apenas informar. A informação, o ato de levar notícias sobre o que está acontecendo com os artistas e o gênero que recebe cobertura de um veículo, é uma das funções do jornalismo cultural. A outra, tão importante quanto, é apresentar novos artistas, novas sonoridades, novas tendências e abordagens para o público. Mostrar que o gênero que ele tanto ama segue evoluindo e andando para frente. Que não está parado e sem ideias, mas sim pulsando de maneira vibrante e sempre criativa. Sem evolução, sem coragem para apostar, o Metallica não teria gravado “Fade to Black” e “One”, dois de seus maiores clássicos. O Iron Maiden não teria composto algo como “Powerslave" se não tivesse coragem de experimentar. Essas canções são amadas pelo público hoje em dia, e são exemplos de como uma banda pode evoluir e experimentar novas sonoridades. Trazer exemplos como esses ao público, apresentando bandas atuais que fazem algo novo, original, atual e moderno para o heavy metal, é uma das funções mais importantes de uma imprensa que se diz - e quer ser - entendida como especializada no nicho a que se dedica. Se não fizer isso, a auto-intitulada "revista de heavy metal do Brasil" seguirá sendo apenas um fanzine de luxo, quando muito.

Tenho mais de uma década de experiência no jornalismo musical, sendo editando a Collectors Room ou colaborando para sites como Whiplash e revistas como RockHard/Valhalla e outras. E, assim como eu, qualquer pessoa que já esteve à frente de um veículo dedicado ao metal aqui no Brasil sabe o quão frustrante é produzir e postar matérias sobre novas bandas e ver esses textos passarem batido pela grande maioria dos leitores. Na contramão, basta escrever um post falando sobre a saliva de Bruce Dickinson, a cueca suja de Ozzy ou o sanduíche que James Hetfield comeu em seu café da manhã para ver os índices de audiência irem para as alturas. Convenhamos, podemos mais que isso, né gente?

Outro ponto que merece discussão quando falamos no mercado de metal aqui no Brasil é a postura da grande maioria dos veículos, sejam sites, blogs ou revistas, em relação às bandas nacionais. É importante e fundamental divulgá-las e apresentá-las ao público, mas sempre mantendo o senso crítico como pauta do dia. Traduzindo: não é porque uma banda é brasileira que ela possui o status automático de excelente. Isso está muito longe da verdade. Ao analisar um disco de uma banda nacional, é preciso ter coragem tanto para elogiar quanto para criticar o que precisa ser criticado. É dessa maneira, ouvindo uma opinião isenta e crítica vinda de fora, que esses artistas podem perceber onde precisam melhorar, quais as qualidades que possuem e quais os defeitos que precisam corrigir. Existem centenas e centenas de blogs e sites focados em heavy metal em todo o Brasil, e por experiência própria posso afirmar que mais de 95% deles abrem mão de todo e qualquer senso crítico ao resenhar um trabalho de uma banda nacional. Que validade tem um veículo com essa postura? Jornalismo cultural, crítica musical, não é release de assessoria de imprensa. Se toda banda ganha nota 9 ou 10, algo está muito errado.

O modo como as coisas são feitas incentiva essa postura. A gravadora, ou o produtor, ou a banda, envia um CD para um veículo resenhar. Se esse veículo tiver a petulância de falar mal do disco, de criticar o trabalho e apontar o que ele acha que deve ser melhorado, sabe o que acontecerá? Portas se fecharão, em um ciclo que vira uma bola de neve. Você passa a não receber mais materiais promocionais, credenciais para shows e eventos somem, quem era amigo agora não é mais. Fulano fala para ciclano, e quando você percebe está sozinho em um mercado que é corporativista pra caramba, onde a troca de favores e o tapinha nas costas tem mais valor que um trabalho jornalístico desenvolvido de forma séria e independente. Ter e manter uma postura autônoma em um mercado editorial como o nosso, vai, vai, vai … até que cansa e você ou para de escrever, ou fica escrevendo pra você mesmo.


Vivemos uma realidade meio assustadora aqui no Brasil. O termo “classic rock”, por exemplo, é muito mais maléfico do que benéfico. Ele limita os veículos, as rádios, os ouvintes. Produzir a programação de uma rádio de classic rock, ou de uma festa de classic rock, é a coisa mais simples e fácil do mundo. O público que ouve e vai a esses eventos quer escutar sempre a mesma coisa, e fica chateado e ofendido se não encontrar o que procura. Então, dá-lhe “Smoke on the Water”, “Paranoid”, “Sweet Child O' Mine”, “Enter Sandman”, “Fear of the Dark” e afins rodando em eterno repeat. Enquanto isso, Crack the Skye e “Oblivion" trazem o Mastodon desafiando conceitos, Unto the Locust mostra o Machine Head renovando o thrash, e isso é ignorado solenemente.

Todo esse conservadorismo, todo esse apego ao clássico e ao que é julgado "correto" em relação ao heavy metal, ao que “pode e não pode”, faz com que uma banda inovadora, original e, porque não, genial como o Sepultura, siga gerando reações negativas em seu próprio chão. Sejamos claros e diretos: Beneath the Remains e Arise são discos excelentes que mostraram ao mundo que era bom ficar de olho naquele quarteto vindo de um pitoresco país tropical, mas foram Chaos A.D. e, principalmente, Roots, que mostraram que esse país sul-americano tinha dado a luz a uma das bandas mais originais e inovadoras da história do metal. E Roots, principalmente, segue sendo questionado e criticado por uma parcela considerável de fãs e jornalistas brasileiros, que, mesmo passados duas décadas de seu lançamento, ainda parece não ter sido assimilado por aqui. Em um mercado com uma imprensa especializada de verdade, capaz de formar leitores atualizados com o que acontece no heavy metal como um todo, isso não aconteceria.

O ponto é o seguinte: tudo que envolve o metal aqui no Brasil precisa ser mais sério e profissional. A imprensa precisa ser mais independente e não uma ferramenta para troca de favores. Uma crítica de disco que fale de maneira clara as falhas e pontos baixos do trabalho de uma banda nacional deve deixar de ser a exceção. Passa por quem tem o poder de formar opiniões, seja através de uma revista, um site, um programa de rádio ou seja lá o que for, a mudança da mentalidade conservadora, saudosista e bairrista que pauta a cena metal brasileira.

Se nada for feito, daqui há dez anos assistiremos o Mastodon ou qualquer outra banda “nova" e popular tocando só pela TV, enquanto qualquer banda cover mequetrefe do Iron Maiden, Metallica e do Sabbath lotará estádios por aqui. 

Dá pra ser melhor que isso, convenhamos.

Comentários

  1. Matéria sensacional. Até eu mesmo quando escuto a uma banda nacional percebo que pelo fato de querer incentivar às vezes esqueço de criticar também. Concordo muito quando fala que não é porque é nacional que a banda já é excelente. Embora considere o incentivo extremamente importante para o cenário e que a crítica também é uma forma de incentivo. Parabéns pela matéria.

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