Quadrinhos: Refugiados - A Última Fronteira, de Kate Evans


A questão dos refugiados é um dos maiores flagelos do mundo atual. Milhões de pessoas fogem de países da África e do Oriente Médio em busca de destinos melhores, com a esperança de deixar a fome e a miséria para trás. Esse êxodo moderno gera tragédias como as dezenas de acidentes com barcos super lotados no Mar Mediterrâneo, e que foram responsáveis por uma das imagens mais tristes já clicadas: a foto de um menino sírio morto em uma praia da Turquia em 2015.

Um dos destinos mais procurados é a cidade portuária francesa de Calais, onde milhares de pessoas vão com o objetivo de cruzar o Canal da Mancha, entrar na Inglaterra e conseguir construir uma nova vida. Conhecido como Selva de Calais, o campo de refugiados lá localizado abrigava cerca de 8 mil pessoas vivendo em péssimas condições de higiene e com pouco comida, e foi desmantelado pelo governo francês em 2016.


Esse é o cenário de Refugiados - A Última Fronteira, da escritora e artista britânica Kate Evans, que a Darkside Books está lançando aqui no Brasil (formato 21x28, capa dura, 176 páginas). Autora de Rosa Vermelha - Uma Biografia em Quadrinhos de Rosa Luxemburgo (que saiu por aqui pela Martins Fontes em 2017), Kate relata o que viu na Selva de Calais a partir de várias viagens ao local. E o resultado disso é uma HQ poderosa e perturbadora.

Há quem pense que a única coisa que importa é a sua própria vida, e o resto que se dane. Aqui em Florianópolis, onde vivo, as pessoas que não conhecem o centro da cidade ficam chocadas ao perceber a enorme quantidade de sem teto que dormem nas ruas todos os dias. Você pode contá-los às dezenas, fácil, e esse número só cresce. Há também quem não se importa com o que acontece além das fronteiras do seu país. "O que é lá de fora não me diz respeito", pensam essas pessoas. Aqui no sul do país, esse sentimento é especialmente forte em relação aos cidadãos haitianos que vieram para o Brasil após o terremoto que atingiu o Haiti em 2010 e devastou a capital, Porto Príncipe. Muitas desses haitianos que vemos nas ruas de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e outros estados brasileiros possuem instrução superior, mestrado e até mesmo doutorado, mas são olhados de cima para baixo pela maioria dos nossos compatriotas - como se um curso superior ou um diploma justificassem um tratamento diferenciado, mas, enfim, é o que muitos pensam aqui neste estranho pedaço de terra teoricamente abençoado por Deus e bonito por natureza. O fato de serem negros também não ajuda, afinal sabemos bem o quanto o Brasil é um país racista e, cada vez mais, também xenófobo.

Como bem aprendemos com a recente passagem de Roger Waters por aqui, o mundo não tem fronteiras. Eu, você, Roger e aquele cara que dorme na rua somos todos cidadãos do mundo. As fronteiras entre os países, quando estamos falando de algo físico, praticamente não existem (com exceções construídas pelo homem como a Muralha da China, o finado Muro de Berlim e o infame muro entre os Estados Unidos e o México que Donald Trump quer construir). Já o sonho de uma vida melhor, de ser alguém na vida e poder oferecer um futuro para nossos filhos, esse é universal. E é o que move, por exemplo, a imensa caravana que partiu da América Central e caminha em direção aos Estados Unidos neste exato momento. O mundo é, afinal de contas, de todos nós.




O que Kate Evans apresenta em Refugiados é um retrato cru e sem filtros do que ela viu em Calais. Não há sutilezas e nem uma mera tentativa de suavizar o que a história conta. O que vemos é o contraste que o ser humano é capaz: enquanto um busca uma vida mais digna, o seu semelhante o humilha, bate e faz o diabo para que ele não consiga. E tudo isso em nome de fronteiras, cidadanias e independências que, convenhamos, não poderiam ser o combustível para tamanha estupidez.

A arte de Kate não traz maiores refinamentos e é, em certos aspectos, até mesmo grosseira. Essa característica deixa ainda mais forte a mensagem que o quadrinho transmite. Tudo é muito expressivo, derramando desespero, dor e desamparo em praticamente todas as páginas. O texto vai na mesma linha, não economizando palavras para contar o horror de uma situação chocante e que ocorreu há pouquíssimo tempo.

Ao final da leitura, a sensação é de que Refugiados é uma HQ que pode ser colocada no mesmo nível de outras grandes obras do jornalismo em quadrinhos como os livros de Joe Sacco (Palestina, Reportagens, Noites sobre Gaza e outros) e outros nomes que exploram o estilo.


Há muito tempo as histórias em quadrinhos deixaram de ser uma mídia (ou linguagem, ou meio, chame como preferir) exclusiva do público infantil. HQs como Refugiados - A Última Fronteira são mais um exemplo de como os quadrinhos são uma plataforma perfeita para contar histórias sobre a benção e o flagelo que é (tentar) ser humano. 

Uma leitura obrigatória e que ajuda a entender o tempo em que vivemos.


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