Discoteca Básica Bizz #138: Curtis Mayfield - Superfly (1972)


No início dos anos 1970, cantar soul music nos dream teams da Motown, da Atlantic ou da Stax (gravadoras que, na época, dominavam o filão do pop negro) já garantia cinquenta por cento de chance de se fazer sucesso.

Curtis Mayfield não tinha contrato com nenhuma delas, mas não estava nem aí. Depois de passar treze anos com o grupo vocal The Impressions, compondo hits como "People Get Ready" e "Keep On Pushin"', o soulman de Chicago achou que já era tempo de apostar no próprio taco. Fundou um selo, o Curtom Records, e largou o velho grupo. Em fevereiro de 1970 chegava às lojas Curtis, seu primeiro álbum solo. O público respondeu bem, abrindo caminho para Curtis/Live! (1971) e Roots (1972), álbuns que solidificaram a alternativa de Mayfield ao já estabelecido padrão sonoro da Motown. Suas letras, recheadas de temas ainda polêmicos, como racismo, paz e ecologia, produziam um contraste perturbador com os vocais agudos, reforçados por violinos ou riffs orquestrais.

Porém, foi só no quarto álbum que o soulman afinou sua fórmula musical, beirando a perfeição. Convidado a compor e gravar a trilha sonora do filme Superfly, ainda em 1972, Mayfield emplacou seu maior sucesso. E acabou criando também, na opinião de muitos críticos, sua definitiva obra prima.


Com um elenco predominantemente negro, o longa metragem de Gordon Parks narrava a história de um traficante de drogas do Harlem, em Nova York. O charme da música foi decisivo para o sucesso do filme, que provocou muita polêmica graças a uma certa ambiguidade ética. Se, em canções da trilha como "No Thing On Me (Cocaine Song)" ou "Freddie's Dead", Mayfield não poupava críticas às drogas, ao mesmo tempo o personagem do traficante (vivido por Ron O'Neal) era tratado pelo diretor como um herói.

Mas não foi a repercussão do filme, mas sim o enorme talento musical de Mayfield, que fez do álbum Superfly um clássico do pop negro. Em faixas como "Pusherman" e "Superfly", ele sintetizou sua inovadora receita dançante: combinou uma guitarra hipnótica e vocais em falsete com percussão latina (congas e bongos), aproximando mais sua soul music do então emergente funk. Ok, a instrumental "Junkie Chase" chega a lembrar um pouco o tema da conhecidíssima trilha sonora de Shaft (1971), que até rendeu um Oscar a Isaac Hayes. Mas basta ouvir o primeiro álbum de Mayfield para se afastar qualquer suspeita de plágio. Ali já aparecia a mesma guitarra rítmica com efeito wah-wah, os mesmos riffs orquestrais, a mesma bateria pesada. Ou seja, o soulman de Chicago criara alguns anos antes uma deliciosa receita musical que foi sendo aprimorada nos discos seguintes.

Talvez você não saiba, mas Mayfield foi vítima de um acidente trágico, que o afastou dos palcos, em 1991 - voltou aos discos apenas em 1997, com New World Order. Durante um show, em Nova York, um aparelho de iluminação caiu sobre ele, deixando-o tetraplégico. Pelo menos teve tempo de deixar gravadas dezenas de discos preciosos. Mas só por Superfly Curtis Mayfield já teria seu lugar garantido entre os grandes mestres da música pop de todos os tempos.

Texto escrito por Carlos Calado e publicado na Bizz #138, de janeiro de 1997

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