Discoteca Básica Bizz #206: Serge Gainsbourg - Histoire de Melody Nelson (1971)



A esta altura do campeonato, o mundo se divide em: a) os fãs apaixonados de Gainsbourg; b) os que o reconhecem vagamente como autor do hit pornô-kitsch "Je T'Aime (Moi Non Plus)". Mas, graças ao esforço de Beck, Nick Cave, Franz Ferdinand, Michael Stipe, Placebo, entre outros que o regravaram, samplearam e enalteceram, o segundo time tende a diminuir.

O cantor, compositor, cineasta, pintor, provocador, etc, morreu em 1991. E, desde então, o culto a ele vem extrapolando as fronteiras da França, entronizando-o como uma das figuras mais interessantes e inclassificáveis da cultura pop do século XX. Recentemente, Monsieur Gainsbourg juntou figuraças como Michael Stipe e Jarvis Cocker para um tributo bem-sucedido. Nessa reavaliação, o disco que vem se consolidando um consenso quanto ao seu ápice criativo é Histoire de Melody Nelson (1971).

Entre 1967 e 1968, a situação de Gainsbourg dera duas guinadas. Ele foi abandonado por Brigitte Bardot, que ainda por cima o proibiu de lançar a gravação de "Je T'Aime" em que ela fazia os vocais - e em que ele tinha apostado todas as suas fichas pessoais e profissionais. Foi então que, deprimido, ele cruzou com uma inglesinha dentuça nos testes para o filme Slogan, que ele ia estrelar e musicar. Com apenas 18 anos, era Jane Birkin, protagonista do primeiro nu frontal do cinema inglês em Blow Up (1966).

O conquistador francês passou meio batido pela magrela (o oposto da voluptuosa Bardot), mas ela tinha muita personalidade e ele acabou se apaixonando - e a fez regravar "Je T'Aime", para a qual vinha tentando achar uma substituta à altura (inclusive Marianne Faithfull, que temeu a reação de seu namorado, Mick Jagger). O resto já se sabe. Os gemidos da pioneira "canção de motel" simbolizaram e catalisaram as transformações sexuais da época e lançaram Serge num cínico e controverso mega estrelato.


Ele, então, tinha duas questões a responder: qual seria a sucessora desse escândalo todo (que incluía ameaças de excomunhão pelo Vaticano) e como incorporar à sua vida-obra a paixão pela inglesinha que às vezes parecia um garoto. Essa é a gênese de Histoire de Melody Nelson. Apaixonado, o esteta cruel concebeu um álbum conceitual movido a guitarras psicodélicas, uma cozinha embebida em soul e uma orquestra e um coral carregados de dramaticidade. Com o maestro Jean-Claude Vannier, ele foi gravar em Londres com músicos até recentemente não-identificados. Especulou-se que Jimmy Page seria o guitarrista - mas, para um show público do álbum, Vannier finalmente revelou e convidou a banda original: Dougie Wright (bateria), Big Jim Sullivan (guitarra) e Herbie Flowers (baixo).

Com um vocal falado e grave, registrado bem perto do microfone e se sobrepondo à massa sonora, Gainsbourg conta a história de um homem maduro que atropela uma jovem ciclista com seu Rolls Royce, acaba transando com ela em um bordel barroco e, finalmente, faz cair o avião em que ela se vai, invocando um ritual primitivo da Nova Guiné. Dá para ler sob essa simbologia algo da história de Serge e Jane (que é a foto de capa e faz os vocais, inclusive os risos na música mais sexy da história - sim, superando "Je T'Aime" -, "En Melody").

Mal comparando, Serge lembra Bryan Ferry ao emular pós-modernamente os velhos crooners e seus pianos, só que, então aos 40 anos, Serge tinha sido mesmo um desses chansoniers, antes de se apaixonar pelo pop e pelos escândalos. Com apenas meia hora de duração, fundindo literatura, colagens pop (são notáveis os clipes, como o de "L'Hotel Particulier''), rock, funk, música orquestral e valsa, incompreendido e ambicioso, Histoire de Melody Nelson passou longe das paradas até que, 30 anos depois, começou a ser reavaliado.

Aos poucos, o mundo vai alcançando Gainsbourg.

Texto escrito por Alex Antunes e publicado na Bizz #206, de outubro de 2006


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