A esta altura do campeonato, o mundo se divide em: a) os
fãs apaixonados de Gainsbourg; b) os que o reconhecem vagamente como autor do
hit pornô-kitsch "Je T'Aime (Moi Non Plus)". Mas, graças ao esforço
de Beck, Nick Cave, Franz Ferdinand, Michael Stipe, Placebo, entre outros que o
regravaram, samplearam e enalteceram, o segundo time tende a diminuir.
O cantor, compositor, cineasta, pintor, provocador, etc,
morreu em 1991. E, desde então, o culto a ele vem extrapolando as fronteiras da
França, entronizando-o como uma das figuras mais interessantes e
inclassificáveis da cultura pop do século XX. Recentemente, Monsieur Gainsbourg
juntou figuraças como Michael Stipe e Jarvis Cocker para um tributo
bem-sucedido. Nessa reavaliação, o disco que vem se consolidando um consenso
quanto ao seu ápice criativo é Histoire de Melody Nelson (1971).
Entre 1967 e 1968, a situação de Gainsbourg dera duas
guinadas. Ele foi abandonado por Brigitte Bardot, que ainda por cima o proibiu
de lançar a gravação de "Je T'Aime" em que ela fazia os vocais - e em
que ele tinha apostado todas as suas fichas pessoais e profissionais. Foi então
que, deprimido, ele cruzou com uma inglesinha dentuça nos testes para o
filme Slogan, que ele ia estrelar e musicar. Com apenas 18 anos, era Jane
Birkin, protagonista do primeiro nu frontal do cinema inglês em Blow Up (1966).
O conquistador francês passou meio batido pela magrela (o
oposto da voluptuosa Bardot), mas ela tinha muita personalidade e ele acabou se
apaixonando - e a fez regravar "Je T'Aime", para a qual vinha
tentando achar uma substituta à altura (inclusive Marianne Faithfull, que temeu
a reação de seu namorado, Mick Jagger). O resto já se sabe. Os gemidos da
pioneira "canção de motel" simbolizaram e catalisaram as
transformações sexuais da época e lançaram Serge num cínico e controverso
mega estrelato.
Ele, então, tinha duas questões a responder: qual seria a
sucessora desse escândalo todo (que incluía ameaças de excomunhão pelo
Vaticano) e como incorporar à sua vida-obra a paixão pela inglesinha que às
vezes parecia um garoto. Essa é a gênese de Histoire de Melody Nelson.
Apaixonado, o esteta cruel concebeu um álbum conceitual movido a guitarras
psicodélicas, uma cozinha embebida em soul e uma orquestra e um coral
carregados de dramaticidade. Com o maestro Jean-Claude Vannier, ele foi gravar
em Londres com músicos até recentemente não-identificados. Especulou-se que
Jimmy Page seria o guitarrista - mas, para um show público do álbum, Vannier
finalmente revelou e convidou a banda original: Dougie Wright (bateria), Big
Jim Sullivan (guitarra) e Herbie Flowers (baixo).
Com um vocal falado e grave, registrado bem perto do
microfone e se sobrepondo à massa sonora, Gainsbourg conta a história de um
homem maduro que atropela uma jovem ciclista com seu Rolls Royce, acaba
transando com ela em um bordel barroco e, finalmente, faz cair o avião em que
ela se vai, invocando um ritual primitivo da Nova Guiné. Dá para ler sob essa
simbologia algo da história de Serge e Jane (que é a foto de capa e faz os
vocais, inclusive os risos na música mais sexy da história - sim, superando
"Je T'Aime" -, "En Melody").
Mal comparando, Serge lembra Bryan Ferry ao emular
pós-modernamente os velhos crooners e seus pianos, só que, então aos 40 anos,
Serge tinha sido mesmo um desses chansoniers, antes de se apaixonar pelo
pop e pelos escândalos. Com apenas meia hora de duração, fundindo literatura,
colagens pop (são notáveis os clipes, como o de "L'Hotel Particulier''),
rock, funk, música orquestral e valsa, incompreendido e ambicioso, Histoire
de Melody Nelson passou longe das paradas até que, 30 anos depois, começou
a ser reavaliado.
Aos poucos, o mundo vai alcançando Gainsbourg.
Texto escrito por Alex Antunes e publicado na Bizz #206, de
outubro de 2006
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