Megalex: a distopia digital de Jodorowsky como prenúncio da era da inteligência artificial (Alejandro Jodorowsky e Fred Beltran, 2025, Pipoca & Nanquim)
Publicado originalmente entre 1999 e 2008, Megalex é uma obra que parecia, à época, uma ficção científica lisérgica e exagerada. Hoje, porém, sua leitura soa quase como uma profecia sombria. Criada por Alejandro Jodorowsky e ilustrada por Fred Beltran, a HQ mergulha em uma distopia onde a natureza foi banida, a cidade se tornou um organismo maquinal totalitário, e a individualidade é anulada em nome da eficiência sistêmica.
A trama se passa em Megalex, uma megalópole-Estado onde tudo é artificial: corpos são modificados desde o nascimento para se encaixarem em padrões pré-estabelecidos de produtividade e beleza; a natureza é considerada ilegal; e a população é mantida sob controle através de tecnologia, drogas e manipulação de dados — um reflexo brutal das tendências atuais de vigilância e dependência digital.
O protagonista é um "mutante", uma anomalia nascida fora dos padrões impostos. Ele representa o erro do sistema, a falha que revela a verdade: que há algo de profundamente errado na perfeição tecnológica. Sua jornada é uma busca por liberdade — não apenas física, mas ontológica, uma tentativa de reconectar-se com aquilo que é genuinamente humano, com o caos orgânico da natureza e com a ancestralidade esquecida.
Como em outras obras de sua carreira, Jodorowsky emprega aqui uma criatividade sempre original e surpreendente. Suas ideias são inusitadas, por vezes absurdas, mas nunca gratuitas: há sempre um fundo ácido e profundamente crítico por trás de cada conceito, cada personagem e reviravolta. Em Megalex, ele oferece não apenas uma visão do futuro, mas uma interpretação simbólica e desconfortável do presente, onde as previsões mais extremas muitas vezes parecem se alinhar com o que estamos começando a viver.
Essa crítica de Jodorowsky encontra eco potente em nossa realidade de 2025, marcada pelo avanço exponencial da inteligência artificial. À medida que delegamos cada vez mais decisões — do que consumir ao que pensar — para algoritmos, Megalex ressoa como uma metáfora urgente: estamos substituindo a natureza pela conveniência, o instinto pela automação, a complexidade humana por métricas otimizadas.
Um detalhe essencial que reforça essa simbologia está na própria estética da HQ. As duas primeiras partes são inteiramente ilustradas em arte digital por Fred Beltran, com quadros que misturam realismo sintético e artificialidade, criando uma sensação de frieza tecnológica — como se o próprio visual estivesse de acordo com a opressão do mundo de Megalex. Já a terceira e última parte, que representa o ápice da trama e o momento de ruptura e revelação, traz ilustrações feitas à mão. A mudança não é apenas técnica, mas conceitual: ao abandonar o digital, a obra visualmente recupera o orgânico, o humano, o imperfeito — exatamente como faz seu protagonista.
Megalex não é apenas uma obra de ficção científica. É um alerta. Uma metáfora poderosa sobre a entrega voluntária do ser humano ao império das máquinas, e um chamado para redescobrir o que nos torna humanos antes que a última árvore seja cortada, o último pensamento independente silenciado e a última memória natural deletada por um algoritmo.
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