Publicado originalmente entre 1998 e 1999, O Vampiro que Ri é uma das obras mais emblemáticas de Suehiro Maruo, artista japonês associado ao movimento ero-guro — uma vertente dos mangás que mistura erotismo, grotesco e horror psicológico, surgida na literatura japonesa dos anos 1920 e transposta para os quadrinhos nas décadas seguintes. É um universo em que a beleza e a perversão caminham lado a lado, e onde o choque não é gratuito: é uma forma de confrontar o leitor com os extremos da condição humana.
A trama apresenta uma galeria de personagens distorcidos pela violência, pela exclusão e pelo desejo. A narrativa gira em torno de vampiros que vagam por uma sociedade degradada, onde a monstruosidade não é apenas física, mas moral e espiritual. Em meio a corpos dilacerados e sorrisos ensanguentados, Maruo constrói uma metáfora amarga sobre a perda da inocência, o fascínio pela destruição e a corrupção da pureza, temas recorrentes em sua obra e na tradição expressionista que o inspira. Importante lembrar que, na época da publicação – o final da década de 1990 e início dos anos 2000 – o Japão vivia um período marcado por diversos atos envolvendo jovens e que chocaram o país, contexto esse que Maruo transpôs para o mangá.
A arte é um espetáculo à parte. O traço é ao mesmo tempo delicado e repulsivo, elegante e brutal, detalhista e explosivo. Sua linha precisa remete ao refinamento de gravuras japonesas tradicionais, mas o conteúdo é puro pesadelo contemporâneo. Há uma beleza mórbida em cada página — o contraste entre o traço impecável e a violência do conteúdo é o que dá ao mangá seu poder hipnótico. Maruo parece buscar o sublime dentro do horror, como se dissesse que o abismo também pode ser contemplado com fascínio.
Influências do cinema expressionista alemão e do erotismo decadente europeu se cruzam nas páginas de O Vampiro que Ri. É uma obra que rompe fronteiras culturais e temporais, falando sobre os horrores universais do preconceito, da solidão e da loucura. A vampira grotesca, rejeitada por todos, simboliza a criatura que a própria sociedade cria e depois destrói — uma crítica ácida à hipocrisia moral que ainda ecoa. Não é uma leitura fácil e os momentos chocantes são realmente muito fortes, o que pode afastar leitores mais sensíveis, mas é justamente essa coragem em colocar nas páginas o lado mais obscuro do ser humano que transformou O Vampiro que Ri em uma obra que não só sobreviveu ao teste do tempo, como segue tão impactante quanto quando chegou às bancas.No Brasil, o mangá foi publicado pela primeira vez pela Conrad, nos anos 2000, em uma edição que se tornou item de colecionador. Agora, a Pipoca & Nanquim relança a obra em um volume luxuoso, com tradução de Drik Sada, formato grande (15,5 x 22 cm), 244 páginas em papel pólen bold 90g, além de sobrecapa e marcador de páginas, respeitando o material original e reforçando o cuidado que o título merece. A editora ainda não informou se publicará a continuação, intitulada Paraíso, mas conhecendo o método de trabalho da Pipoca & Nanquim é bastante provável que isso aconteça.
O Vampiro que Ri continua sendo uma leitura desconcertante, bela e muito incômoda — uma obra que não busca conforto, mas sim provocar reflexão e bastante desconforto. Suehiro Maruo transforma o horror em arte e o grotesco em poesia, lembrando que, por trás de cada sorriso, há sempre uma sombra.
Comentários
Postar um comentário
Você pode, e deve, manifestar a sua opinião nos comentários. O debate com os leitores, a troca de ideias entre quem escreve e lê, é que torna o nosso trabalho gratificante e recompensador. Porém, assim como respeitamos opiniões diferentes, é vital que você respeite os pensamentos diferentes dos seus.