Como comprar: Jazz para Iniciantes


Por Ricardo Seelig
Colecionador

O objetivo dessa lista não é elencar os melhores e mais importantes discos da história do jazz. O que ela se propõe é apenas mostrar dez álbuns que servem de porta de entrada para esse maravilhoso e apaixonante gênero musical. Assim, o requisito básico para figurar nessa dezena de trabalhos foi a acessibilidade, muito mais que a influência e a importância história.

Há, claro, clássicos fundamentais, como "Kind of Blue", "Time Out" e "A Love Supreme", mas também estão ausentes gravações mais do clássicas, como "The Black Saint and the Sinner Lady", "In a Silent Way" e "My Favorite Things". 

E, claro, artistas ficaram de fora, como os sensacionais Duke Ellington, Horace Silver, Sonny Rollins, Louis Armstrong e inúmeros outros, afinal seria impossível listar todos que contrubuíram para o desenvolvimento de um gênero tão rico como o jazz em apenas dez discos.

Enfim, esses são os álbuns que, na minha opinão, formam uma excelente porta de entrada para o jazz, apresentando o estilo com primazia a novos ouvintes, cativando-os e fazendo-os ir atrás dos discos e dos artistas que, como citei, ficaram de fora. Além disso, após ouvir esses trabalhos tenho certeza que a sua maneira de ouvir música sofrerá uma transformação, e pode ter certeza que será para melhor.

Delicie-se, que a satisfação é garantida!

Cannonball Adderley - Somethin' Else (1958) *****

Um dos grandes álbuns da história do jazz, "Somethin´ Else" une um time de músicos primoroso a um repertório irretocável. Ao lado de Julian "Cannonball" Adderley estão Miles Davis, o pianista Hank Jones, o baixista Sam Jones e o baterista Art Blakey. 

Está no álbum a minha versão preferida de "Autumn Leaves", com mais de onze minutos de melodias e harmonias deslizantes, construindo uma experiência singular. Somada à ela, temos ainda "Live for Sale", outro standard do jazz, executada com precisão cirúrgica pelo quinteto. A faixa que dá nome ao play é um exercício de groove estonteante, com o sax de Cannonball e o trompete de Miles em primeiro plano. A malícia deliciosa de "One for Daddy-O" é reconfortante , enquanto "Dancing in the Dark" acaricia nossos ouvidos. 

Enfim, um disco obrigatório em qualquer coleção que se preze. 

Dave Brubeck Quartet - Time Out (1959) *****

Além de ser um dos álbuns mais populares da história do jazz, "Time Out" é também um trabalho fundamental. Gravado ao lado dos excepcionais Paul Desmond e Joe Morello, o quarteto era completado pelo seguro Eugene Wright no baixo.

O disco tem sete faixas, sendo que duas delas são clássicos fundamentais do estilo. "Blue Rondo A La Turk" contém um arranjo matemático, com Brubeck desenvolvendo variações dentro do arranjo. O estilo de Dave, que toca o seu piano de uma forma quase percussiva, funciona como o coração da canção, criando uma base sólida para os demais integrantes alçarem vôos sem limites. 

Paul Desmond, instrumentista brilhante e criativo, é, ao lado de Brubeck, o personagem principal de "Time Out". A liberdade e a sensibilidade que saem de cada nota de seu sax são tão grandes que, mesmo ouvindo o álbum inúmeras vezes, a cada nova audição somos surpreendidos por sensações inéditas. O brilho de Desmond fica escancarado em "Take Five", composição sua e uma das mais conhecidas do jazz. Brilhante e única, "Take Five" por si só justificaria a inclusão de "Time Out" entre os grandes álbuns do século XX. 

O piano de Dave Brubeck, preciso e repleto de malícia e feeling em diversos momentos do álbum, conduz "Time Out" ao posto de álbum fundamental da história da música. Além disso, o disco tem a rara qualidade de ser um trabalho que cativa e agrada até o ouvinte não habituado ao estilo, e, por essa razão, é indicado por muitos como porta de entrada para o jazz.

Miles Davis - Kind of Blue (1959) *****

O clássicos dos clássicos. "Kind of Blue" é, provavelmente, o mais conhecido, importante e influente álbum de jazz de toda a história. Aqui o gênero encontrou a sua melhor tradução e interpretação. 

Construído totalmente a partir do improviso, traz Miles Davis ao lado dos saxofonistas John Coltrane e Cannonball Adderley, dos pianistas Bill Evans e Wynton Kelly, e da cozinha formada pelo baixista Paul Chambers e pela bateria de James Cobb.

Esse disco marca também o nascimento do cool, uma resposta de Miles à velocidade que havia invadido os álbuns de jazz, com os músicos extravasando a sua técnica através de dezenas de notas por compasso. Aqui, o clima é calmo, relaxante, divino, transcedental.

"Kind of Blue" é um álbum milagroso, um exercício de criatividade, o documento definitivo da genialidade de um músico sem igual.

Charles Mingus - Blues & Roots (1960) ****

"Blues & Roots" é um dos meus álbuns prediletos de jazz. Nele não há, por exemplo, a sutileza das construções melódicas e harmônicas de Dave Brubeck, nem as inovações e improvisações de Miles Davis. Charles Mingus era um artista mais visceral, feroz, sanguíneo, e sua música era uma extensão disso.

Como o próprio título anuncia, "Blues & Roots" traz o contrabaixista olhando para o passado em busca de suas raízes. As seis faixas do álbum trazem o som característico de Mingus, repleto de agressividade e paixão, carregado de influências do blues, gênero musical que, para muitos, é quase um irmão do jazz.

O disco abre com o baixo de Mingus criando o groove para os demais instrumentos entrarem e quebrarem tudo em "Wednesday Night Prayer Meeting". Já de saída fica escancarada outra característica marcante da música de Mingus, que são os seus gritos de empolgação, ao fundo dos instrumentos, satisfeito com o desenvolvimento da canção.

"Cryin´ Blues" acalma os ânimos e traz um belo solo de Mingus, enquanto a maravilhosa "Moanin´" tem início com um groove saído dos trombones de Willie Dennis e Jimmie Knepper e se transforma em uma contagiante e deliciosa jam. Já "Tensions" é outro momento mais relax, antecipando "My Jelly Roll Soul", faixa em que Charles Mingus homenageia o lendário Jelly Roll Morton, uma das primeiras lendas do jazz, seguindo o seu estilo de composição em toda a música. O álbum fecha com "E´s Flat Ah´s Flat Too", na linha de "Wednesday Night Prayer Meeting", agressiva e com demonstrações explícitas de todo o talento dos músicos envolvidos.

"Blues & Roots", por suas particularidades, é um álbum recomendado a qualquer iniciante no gênero, pois apresenta as características básicas do jazz somadas à influência do blues, tudo isso embalado pelo estilo visceral de Charles Mingus, o que o transforma em um trabalho pesado e empolgante.

Chet Baker - Chet Is Back! (1962) ****1/2

A conceituada revista Q colocou esse álbum entre os três mais importantes da história do jazz, ao lado de "Kind of Blue" e "A Love Supreme". Basta uma única audição para entender porque. Recém liberado da prisão na Itália, onde foi detido e cumpriu pena por uma das várias vezes em que foi pego com heroína, Chet Baker retornou de forma triunfal com um trabalho que o recolocou, de imediato, entre os principais nomes do estilo, apesar do período em que esteve ausente, mofando em uma cela na velha bota.

Todos os músicos que acompanham Chet são italianos, o que dá ao trabalho um clima mais europeu que os outros plays de Chet. Entre as faixas, destaques para "These Foolish Things", "Over the Rainbow" e para a sensacional "Ballata in Forma di Blues", que, como o título entrega, foi construída sobre uma estrutura de blues, que faz a cama para performances sensacionais de todos músicos envolvidos.

John Coltrane - A Love Supreme (1965) *****

"A Love Supreme" é uma oração musical. Recém saído de uma batalha infernal contra o vício em heroína, que o estava devastando física e emocionalmente, John Coltrane entrou em estúdio disposto a provar que ainda era capaz de fazer música do mais altíssimo nível. E como ele provou ...

Ao lado de McCoy Tyner, Jimmy Garrison e Elvin Jones, três dos maiores nomes da história do jazz, Coltrane ressurgiu das trevas com um álbum que é a sua redenção. As notas que saem de seu instrumento soam doloridas, fortes e cheias de sentimentos. Apesar de conter quatro faixas, "A Love Supreme" é na verdade uma grande suíte, e deve ser ouvido como tal. Seus trinta e poucos minutos contém alguns dos ápices musicais do século XX. 

Ter esse disco é um ato básico para qualquer pessoa que diz gostar de música.

Thelonious Monk - Underground (1968) ****1/2

A capa, com Thelonious Monk posando com um legítimo e ameaçador representante da resistência francesa às forças nazistas, impressiona e mostra o lado provocador desse genial pianista, faceta que o acompanhou em toda a sua carreira.

Musicalmente, o que chama atenção é a atmosfera mais solta imposta por Monk, que toca seu piano de maneira menos angulosa, floreando as teclas de modo mais delicado que o usual. Os demais instrumentistas seguem a mesma linha de raciocínio de seu líder, e não protagonizam a posição deixada em aberto. O resultado é uma audição bem mais acessível, sem a tensão normalmente imposta pelas famosas marteladas no teclado. Os raros vocais empregados nas composições de Monk - aqui entoados por Jon Hendricks - garantem um item de exclusividade a mais a ser verificado.

Há, portanto, algo além da capa a se atentar neste intrigante título, e é o que de mais belo existe nesse mundo: música divina, que toca a alma e alimenta o coração.

Miles Davis - Bitches Brew (1970) *****

Nesse álbum - um dos mais influentes, geniais e polêmicos da história da música - a densidade absoluta é quase sinfônica. 

Tudo em "Bitches Brew" é improvisação, livre, dinâmica a total. Há influências de jazz modal, free jazz, cool jazz, música indiana, árabe e africana, funk, psicodelismo, rock e blues. Um caldeirão efervecente e borbulhando criatividade infinitamente, que fez nascer um novo estilo, uma nova forma de música. "Bitches Brew" é o marco zero do fusion, o álbum que definiu o gênero e o apresentou ao mundo.

O álbum original, lançado em abril de 1970, vendeu 500 mil cópias em um ano, entrou no top#10 americano - feito raríssimo para um disco de jazz - e levou o nome de Miles muito além dos limites do estilo, transformando-o em um mito.

Para quem consome música, seja qual for o gênero, "Bitches Brew" é uma audição obrigatória, básica e fundamental para perceber que não há limites para a criatividade, e também para romper algumas barreiras que a gente coloca, mesmo que inconscientemente, na nossa cabeça. 

Mahavishnu Orchestra - The Inner Mounting Flame (1971) ****1/2

"The Inner Mouting Flame" é o primeiro disco da Mahavishnu Orchestra, grupo liderado pelo espetacular guitarrista inglês John McLaughlin.  Lançado em agosto de 1971,  foi automaticamente considerado pela crítica como um clássico. Motivos para isso não faltam. Suas oito faixas mostram uma imensa, inspiradíssima e definitiva simbiose entre rock, música clássica, jazz, blues e até mesmo elementos de música celta. 

Totalmente instrumental, o álbum tem como elemento principal a guitarra de braço duplo de John McLaughlin, que é o instrumento central de todas as composições. A partir de seus acordes os arranjos evoluem, caminhando por um mundo próprio onde não há diferenças e nem limites entre os gêneros musicais.

Pra lá de técnicos e extremamente virtuosos, todos os cinco músicos, principalmente McLaughlin, Billy Cobham e Jan Hammer, despejam notas rapidíssimas, mas que fazem total sentido nas composições. Há momentos sublimes, principalmente a abertura com "Meeting of the Spirits", as camadas de melodia de "Dawn", a sensacional "The Dance of Maya" e seu contraponto, a calma "You Know You Know".

"Inner Mounting Flame" é um dos discos mais incríveis que eu tive o privilégio de ouvir em quase vinte e cinco anos como consumidor e colecionador de música.

Herbie Hancock - Head Hunters (1973) ****1/2

Lançado em 13 de outubro de 1973, "Head Hunters" é um dos álbuns mais vendidos da história do jazz, ao lado de clássicos como "Time Out" e "Kind of Blue" de Miles Davis, ambos de 1959. São apenas quatro faixas, mas que valem muito.

O groove contagiante de "Chameleon" abre o disco de forma sensacional. São quase dezesseis minutos hipnóticos, com camadas sonoras se sobrepondo umas às outras, construindo uma faixa que, já em seus primeiros momentos, antecipa a maravilha que Herbie Hancock e sua gangue cometeram.

O início doce de "Watermelon Man" mantém o nível nas alturas, introduzindo um funkaço de rachar o chão. O entrosamento do quinteto é absurdo, com cada músico entregando algumas das melhores performances de suas carreiras.

"Sly" e "Vein Melter" completam a bolacha com mais ritmos animais, harmonias que fogem do comum e arranjos complexos que conseguem a proeza de soar simples aos ouvidos. Herbie usa toda a sua técnica espetacular para compor um trabalho que pega as raízes da música negra, pesca esses elementos das ruas, mantendo toda a autenticidade e a força do funk, mas acrescentando um requinte que poucas vezes esse gênero alcançou em sua história.

Maravilhoso, maravilhoso, maravilhoso!!! 

E tenho dito.

Comentários

  1. Ótimo texto. Uma perfeita tradução
    do que os discos dizem.

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  2. Listas são listas.Meio complicado de se recomendar à alguém, mas posso dizer que essa do Cadão foi bem pensada e estão aí grandes nomes do jazz.Apenas incluiria Billie Holiday, Armstrong e Count Basie, além de Duke Ellington.Não podemos desprezar as raízes, não é mesmo ??Ótima matéria...

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  3. Valeu pelos comentários, dupla. Espero que essa matéria sirva para mais pessoas entrarem em contato com o jazz. Se apenas UMA pessoa se interessar pelo estilo lendo o que eu escrevi, já terá valido à pena.

    Abração.

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  4. É isso ae Cadão, e esse é um ponto legal no fato de o blog não ter links pra download. Quem se interessou, que vá atrás, pesquisar mair. Dessa lista não tenho o Mingus, o Baker e o Herbie. Faltas graves na coleção! Vamos a caça! rsrsrs

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  5. Fábio, na próxima ida à Floripa vamos ver se arrumo um tempo pra encontrar você e irmos à caça de uns LPs de jazz.

    Sabe quando sairá a próxima Feira da Vinil?

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