Por Rubens Leme da Costa
Colecionador
Um dos discos mais importantes e influentes da história (abriu as portas até para o psicodelismo, e era umas das grandes paixões de Roger McGuinn dos Byrds), A Love Supreme sedimentou o nome de John Coltrane com o maior saxofonista do jazz depois de Charlie Parker e um dos músicos mais importantes, revolucionários, estudiosos e influentes desde então.
A Love Supreme é mais do que um disco de quatro temas; é sua homenagem a Deus, e segundo o próprio músico, a única vez em que conseguiu imaginar toda a música em sua cabeça e saber exatamente o que queria. Se algum disco chegou perto de ser chamado de "música sagrada" é este. Aliás, Coltrane era considerado quase um santo por fãs e colegas, e sua morte em 1967, de câncer no fígado, foi um choque devastador para o mundo musical.
O público ficou atônito e surpreso quando Miles Davis se aproximou do microfone para dizer algumas palavras, já que Miles se dirigir ao público no meio de um show era algo impensável tanto para os fãs como até para o próprio trompetista. Porém, o motivo era mais do que especial, afinal ele tinha um triste anúncio para fazer: John Coltrane o comunicara que estava deixando o quinteto para seguir seu próprio caminho. A decisão deixou Miles arrasado, pois sabia que nunca mais teria em sua banda um músico com tal calibre. Mas se o mundo perdia a mais fantástica dupla do jazz, ganhava mais um gênio que marcaria época com sua própria banda e em outros trabalhos. Nunca mais a música (incluindo o rock) soaria mais da mesma maneira. E essa influência seria escancarada ainda mais com A Love Supreme.
John Coltrane conseguiu criar em torno de si um grande mito, de maneira intencional ou não. Nascido na improvável cidade de Hamlet, na Carolina do Norte, no dia 23 de setembro de 1926, com o nome de batismo de John William Coltrane, era filho de um alfaiate que morreu quando ele tinha doze anos. Coltrane começou a se interessar seriamente pela música aos dezessete anos, quando resolveu ser músico profissional.Estudioso, sério e com grande apetite para aprendizado, Coltrane sempre tentou ter uma grande disciplina para o trabalho. Ainda jovem, conheceu um de seus ídolos, Charlie Parker, que lhe ensinou a tocar sax alto.
Mas foi no sax tenor que Coltrane fez fama e começou a arregimentar fãs. Depois de passar pela banda de Dizzy Gillespie, o maior amigo de “Bird” Parker, Coltrane acabou entrando no novo quinteto que Miles Davis estava formando. Coltrane não era a opção favorita de Miles, que queria Sonny Rollins para o grupo, mas logo viu que tinha achado o melhor saxofonista que poderia encontrar.
O estilo econômico e com grande liberdade de improvisação de Miles fez Coltrane crescer de forma assustadora. Em pouco tempo ele era a estrela maior do quinteto (após o líder, evidentemente), em um time de notáveis como o baterista Phily Joe Jones, o pianista Red Garland e o baixista Paul Chambers.
Porém, ao mesmo tempo em que ia galgando na carreira, Coltrane enfrentava uma dura luta com as drogas, especialmente a heroína. Por causa dela, ele se ausentou do grupo de Miles entre 1956 e 1957, sendo substituído por Sonny Rollins. Trane (como ficou conhecido por músicos, amigos e fãs) percebeu que não seria possível conciliar o álcool e as drogas pesadas com sua música e tomou uma atitude corajosa ao tentar abandonar tudo e se concentrar apenas em sua arte. Para isso, contou com o apoio de duas mulheres; sua esposa Naima e sua mãe.
A luta não foi fácil, mas Coltrane conseguiu e logo depois voltava ao grupo de Miles, que era agora um sexteto, com a entrada de Julian “Cannonball” Adderley no sax alto, Bill Evans no piano e Jimmy Cobb na bateria. Com esse time – acrescido de Wynton Kelly nas gravações – o grupo produziu o álbum que é considerado o mais importante da história do jazz, Kind of Blue, lançado em 1959.
Pouco tempo depois, Coltrane diria a Miles que deixaria o grupo para cuidar mais de sua própria carreira. Coltrane tinha uma visão mais mística do que Miles sobre a música. Livre das drogas, concentrou-se em explorar novos territórios, tentando misturar a música africana e indiana em seu trabalho. Pouco depois de Kind of Blue chegar às lojas ele lança Giant Steps, em 1960, um disco exuberante que trazia uma canção intitulada “Naima”, homenagem à sua esposa e que acabou sendo sua composição favorita em todo seu catálogo. Coltrane ainda não tinha um grupo fixo e nesse trabalho contou com a ajuda de Paul Chambers, Jimmy Cobb e Wynton Kelly (os dois últimos na própria “Naima”), além de Art Taylor (bateria) e Tommy Flanagan (piano).
Coltrane já começava a explorar outros ritmos e tinha particular predileção pelo músico Ravi Shankar, a tal ponto de dar o nome do indiano a um de seus filhos, isso antes dos dois se conhecerem. Com uma disciplina imensa para trabalhar, Coltrane encontrava sempre muitos locais para tocar e como não gostava de faltar a nenhum compromisso, era cada vez mais requisitado.
Foi somente em 1960 que pensou em formar um grupo, batizado como The John Coltrane Quartet. Mas até chegar à formação clássica – McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (baixo) e Elvin Jones (bateria) - houve um longo caminho. McCoy, por exemplo, foi o pianista com o qual sempre quis trabalhar, mas como Tyner ainda não estava disponível optou por Steve Kuhn, de 22 anos, recém-graduado em Harvard. Para o baixo, convidou Steve Davis. A bateria foi o instrumento que mais preocupava Coltrane. A sua vontade era contratar imediatamente Elvin Jones, mas como ele cumpria pena por porte de drogas acabou chamando Pete LaRoca, recomendado por Kuhn.
Mas o próprio Kuhn teve vida curta no grupo, já que ele não conseguia tocar o que Coltrane exigia. Após seis semanas com o pianista e usando toda sua elegância e educação, Coltrane avisou que seria obrigado a promover uma mudança, já que o pianista não conseguia executar o que ele queria. E aproveitando que McCoy Tyner estava disponível, o contratou. Com os três, Coltrane começou a fazer uma excursão pelo país, e ao invés de escrever novas músicas ficava horas e horas praticando com seu sax tenor e também com um sax soprano, instrumento que encontrava dificuldades para tocar.
Enquanto treinava, Trane procurava saber notícias de Elvin, já que LaRoca o deixava desanimado por não tocar de uma maneira com a qual John sonhava: alta e enérgica. Em Detroit chamou Billy Higgins, mas ainda assim não era o som que tanto desejava. Mas em Los Angeles as coisas mudaram. Após dispensar o baterista, encontrou Thad Jones, trompetista e irmão de Elvin e que estava na cidade tocando com Count Basie. Ao vê-lo soube que seu irmão acabara de ser solto e pegou um número de telefone. Ao ligar para Elvin, fez duas perguntas: se ele estava longe das drogas e se queria tocar em seu grupo. Exultante, Elvin disse sim às duas questões (embora tenha mentido sobre narcóticos), e assim Coltrane tinha, enfim, o baterista que tanto sonhara.
Meses depois, Coltrane fez outra mudança. Usando novamente toda sua diplomacia, aproximou-se de Steve Davis e disse, mais uma vez, que precisaria fazer uma mudança. Dessa maneira, Reggie Workman entrou no lugar do baixista.Após uma série de bons discos e receber o prêmio de músico do ano em 1960 da conceituada revista Down Beat, Coltrane conheceu Eric Dolphy, que tocava sax, clarineta e flauta. Dolphy era a pessoa que Coltrane tanto procurava e o convidou para cuidar dos arranjos de dois discos, Africa/Brass (1961) e Olé Coltrane (1962).
Esse dois trabalhos marcavam a estréia de Coltrane em um novo selo, o Impulse!, que ofereceu a Coltrane um contrato que faria dele o mais bem pago músico de jazz, sendo superado apenas por Miles Davis. O contrato era simples: por um ano (com opção de renovação por mais dois anos) Coltrane receberia US$ 50 mil dólares adiantados, divididos em três parcelas: US$ 10 mil no primeiro ano e US$ 20 mil nos anos seguintes. O contrato o obrigava a lançar pelo menos dois discos a cada ano, e para escapar dos altos impostos os royalties seriam pagos em quatro parcelas trimestrais de US$ 2.500. Se esse contrato assustaria qualquer músico de hoje em dia, para Coltrane era um alívio; finalmente seria bem pago para fazer aquilo que lhe parecia a coisa mais natural do mundo: gravar.
Assim, Coltrane começou a produzir um disco mais inovador do que outro. Suas obras estavam longe de serem facilmente assimiladas e havia quem o acusasse de não ter a mesma delicadeza ou riqueza de um Lester Young. Mas o caminho dele era outro. Coltrane queria explorar fronteiras onde ninguém havia chegado. No final do ano ele substituiu Reggie Workman por Jimmy Garrison, consolidando a clássica formação de seu quarteto, com Elvin Jones na bateria, McCoy Tyner no piano e Garrison no baixo.
O ritmo de trabalho de John Coltrane era exaustivo, mas os músicos entendiam perfeitamente a necessidade dele de gravar e se expressar. Após abandonar as drogas, o saxofonista começou a enfrentar problemas com o excesso de peso corporal e tomava várias precauções com sua saúde, embora seu peso oscilasse muito ao longo dos anos.
De todos os músicos o que mais o agradava era Elvin Jones, que considerava seu irmão gêmeo. Apenas Elvin era capaz de reproduzir na bateria o vulcão que era Coltrane no sax tenor. Cada vez mais místico e voltado para Deus, Coltrane perdoava o temperamento instável e explosivo do baterista. Na biografia Chasin’ the Trane de J. C. Thomas, Elvin conta uma história interessante: após pedir o carro de Coltrane para ir a um encontro, o destruiu ao colidir com uma árvore na volta. Embora tenha saído ileso, ficou com medo da reação de Coltrane. Quando contou a ele que havia destruído seu veículo, ficou surpreso com a resposta: “Bem, eu posso conseguir outro carro, mas não outro Elvin.”
Com o quarteto solidificado, Coltrane pode fazer todos os discos que desejava, e para grande surpresa da Impulse! tornou-se um excelente vendedor de vinis. Porém, sua vida pessoal sofria com o ritmo totalmente voltado ao trabalho, e em 1963 separou-se de Naima. Mas logo depois conheceu Alice, com quem se casaria e viveria até sua morte, em 1967.
Em abril de 1964 teve seu contrato renovado com a Impulse! em bases muito melhores. Mantendo o mesmo esquema (um ano com opção de renovar por mais dois), receberia agora US$ 25 mil dólares adiantados a cada ano. Coltrane era o músico de maior vendagem do selo, e cada LP seu vendia entre 25 a 50 mil cópias, um número excelente para um disco de jazz. A Love Supreme seria um caso à parte, vendendo mais de 100 mil cópias em aproximadamente um ano.
Apesar de seus discos não aparecerem nas paradas de sucesso, Bob Thiele, produtor do selo, fez um interessante comentário: “John vendia muito para um músico de jazz, mas eu quase nunca ouvia sua música em rádio e me perguntava, afinal, quem comprava seus discos. Então, quando comecei a visitar várias escolas e universidades em um programa educacional, descobri que ele tinha um enorme público entre os estudantes e vi que eram eles os amantes de sua música.”
E no mesmo ano que renovou o contrato com a Impulse!, Coltrane lançaria sua obra máxima, A Love Supreme. Quando se preparava para gravar o disco, ele tinha duas imagens em mente: Deus e o físico alemão Albert Einstein, de quem era fã. Coltrane o considerava uma pessoa iluminada e gostava de conversar sobre como a música derivava da matemática, da maneira que os intervalos afetam alguns acordes e como poderia ser usada para criar uma nova ordem musical.
Matemática à parte, era Deus também que o inspirava. Deus e seu lado místico, principalmente por estar estudando a cabala. Por isso, quando Coltrane reuniu o quarteto para gravar o disco, dizia que muitas vezes conversava com o Senhor por horas. Durante esses meses, ele começou a sentir dores na barriga, dores essas que acabariam resultando no câncer de fígado que o mataria.
Coltrane queria entender os mistérios da vida e da morte, e para muitas pessoas era um prenúncio de que não viveria muito mais. Particularmente, sua mãe ficava exasperada ao ouvir seu filho dizer que havia composto A Love Supreme como um presente para Deus. Isso era um sinal de que Ele o estava chamando e que logo iria embora. Verdade, ou não, Coltrane escreveu no encarte original do disco que experimentou a graça de Deus em 1957, que o conduziu a uma vida mais produtiva e rica. Coltrane diz ainda que o disco é um humilde presente a Ele e termina com a frase “louvado seja Deus”.
Durante a gravação, o saxofonista deixou clara sua emoção, dizendo que era a primeira vez que recebia toda a música que queria gravar e era, de fato, a primeira vez que tinha tudo pronto. E o que ele tinha pronto era quase um mantra dividido em quatro partes: “Acknowledgment”, “Resolution”, “Pursuance” e “Psalm”.
A primeira faixa, “Acknowledgment”, surpreende com uma pequena intervenção vocal de John, recitando, em forma de mantra, o título do disco. Cada faixa levou o título de "Part 1", "Part 2", "Part 3" e "Part 4" do produtor Bob Thiele, que editou as duas primeiras no lado A e as outras duas no lado B. O mais impressionante é que as duas últimas faixas foram gravadas em apenas um take, com um pequeno intervalo para que John explicasse o que queria. McCoy Tyner relembra que algumas músicas já tinham sido tocadas em concertos e que John fazia isso porque gostava de experimentá-las, dar uma nova roupagem a elas.
Com A Love Supreme e seus pouco mais de 32 minutos de música, Coltrane expandiu seu universo para um lugar onde não poderia mais voltar. Phil Lesh (Grateful Dead) e Roger McGuinn (Byrds) poderiam falar horas de como a música de Coltrane influenciou não apenas a eles mas também a toda uma geração de músicos que criaram o movimento hippie e o rock dos anos sessenta, que particularmente não interessava a Coltrane.
Daí em diante, John Coltrane entraria em trabalhos cada vez mais intrincados, viscerais, pesados e que afugentariam boa parte dos seus fãs. Sobre isso, o músico afirmava que estava ciente de que perdia adeptos de seus sons, mas que não podia fazer nada a respeito, pois só se interessava em progredir e que se o preço fosse esse, arcaria sem reclamar. Vale acrescentar que a foto da capa do LP foi tirada pelo produtor Bob Thiele em 1962, quando Coltrane gravou um álbum em parceria com o não menos lendário Duke Ellington.
Mas mesmo que a música de Coltrane tenha entrado numa espiral muito experimental e incompreendida, ele continuou tocando até que o câncer o levou às quatro da manhã de 17 de julho de 1967. Nunca mais a música – seja ela o jazz ou qualquer outra – experimentaria tanta inovação. Nem Hendrix, nem ninguém, teve tempo ou talento para tanto.
Encerro com o poema “A Love Supreme” escrito pelo John Coltrane na contracapa do LP. Um abraço e até a próxima coluna.
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