Abbey Road: os 40 anos do último álbum dos Beatles


Por Vitor Bemvindo
Historiador e Colecionador

Poderia uma banda com sérios problemas de relacionamento produzir um dos melhores álbuns de sua carreira? Quando se trata dos Beatles a resposta é óbvia: sim! O talento absurdo de cada um dos seus membros, combinado com uma química inigualável quando estavam juntos, ajudava a banda a superar crises e se focar na criatividade. Foi o que aconteceu em Abbey Road que está comemorando seus 40 anos de lançamento - o disco chegou às lojas no dia 26 de setembro de 1969.

O ano de 1969 foi extremamente traumático para os Beatles. Começou com a reunião da banda para as sessões de gravação do disco Get Back (que seria lançado uma ano mais tarde como Let It Be). Durante janeiro e fevereiro daquele ano as tensões entre os membros da banda mostraram-se destruidoras e o processo de produção do álbum foi desastroso. Todos os problemas fizeram com que o grupo interrompesse a produção de Get Back para tirar férias uns dos outros, até que esfriassem a cabeça e pudessem estar novamente juntos.

As tensões começaram a se evidenciar durante as gravações do álbum duplo The Beatles (mais conhecido como White Album), quando as divergências criativas se expuseram de maneira mais clara, ficando cada um responsável por um número determinado de faixas. O álbum acabou se tornando quase uma compilação de canções solo de cada integrante. Esse processo foi amenizado em Get Back, mas as divergências tornavam a convivência quase insustentável.

Depois da histórica aparição no telhado da gravadora Apple, cada um dos Beatles seguiu um caminho para tentar esquecer os problemas. O fanfarrão Ringo Starr resolveu investir na carreira de ator, protagonizando, ao lado do genial Peter Sellers, o filme The Magic Christian (lançado no Brasil como Um Beatle no Paraíso). John Lennon se engajou em sua campanha pela paz, lançado o single de sucesso "Give Peace a Chance" com a Plastic Ono Band. Paul McCartney resolveu tirar férias, mas mesmo assim trabalhou na produção do primeiro álbum da banda Badfinger (que acabaria por virar a trilha sonora de The Magic Christian). George Harrison se empenhou na finalização de seu segundo álbum solo, Eletric Sound, e logo em seguida iniciou o processo de produção do primeiro LP de Billy Preston.

Mas todos concordaram em abandonar temporariamente os projetos pessoais quando Paul sugeriu a George Martin (produtor de quase todos os álbuns do Fab Four) que os Beatles voltassem ao estúdio, como nos velhos tempos, para gravar um disco. Martin hesitou em aceitar o convite, pois temia que o projeto tivesse a oposição de John Lennon, que ao contrário do que se pensava, logo aprovou a idéia. Martin concordou em produzir o LP desde que o processo fosse levado coletivamente e que não houvesse problemas no relacionamento entre os quatro.

A idéia de dirimir as divergências criativas entre o quarteto durou pouco. John Lennon e Paul McCartney discordaram logo no princípio do processo, quanto ao conceito do álbum. Enquanto Lennon queria fazer um álbum básico de rock, com pouca pós-produção e overdubs, McCartney defendia a idéia de fazer uma ópera rock grandiosa, com arranjos orquestrados e muitos efeitos. A solução encontrada foi dividir o trabalho: o lado 1 seria como John idealizou, e o 2 teria as idéias de Paul. E assim foi feito.


A música que abre o disco era um convite à reunião. Apesar de todos os problemas e sabendo que o fim estava próximo, todos concordaram em deixar como tema de abertura "Come Together". Poucos sabiam, no entanto, que a faixa trava-se de um jingle eleitoral, elaborado pro Lennon para a campanha de Timothy Leary ao governo da Califórnia. Leary era um escritor entusiasta dos psicotrópicos, em especial do LSD, que por seu engajamento em defesa da liberalização das drogas era tido como um guru para a geração de fins dos anos 1960. Por fim, Leary desistiu da candidatura, mas Lennon resolveu aproveitar a canção, que nascera inspirada na faixa "You Can't Catch Me" de Chuck Berry. A canção de Lennon copiava deliberadamente alguns versos da de Berry, o que rendeu um processo contra o Beatle. No final, um acordo judicial livrou-o do processo com um acordo que previa a gravação de duas canções de Berry no seu disco solo Rock and Roll, lançado por John em 1975.

Outra polêmica em torno de "Come Together" foi a menção feita à Coca-Cola. Algumas redes de comunicação se negaram a executar a canção, por achar que se tratava de uma referência publicitária, mas nada foi provado a esse respeito.

O processo de gravação da faixa foi bem rápido. Em apenas nove tomadas a banda já havia concluído a canção. Mas isso não significou que as polêmicas entre os membros da banda não aconteceram. Lennon queria incluir um vocal confuso na introdução, que na verdade era a expressão "Shoot Me" (no sentido de "injete-me", ou na gíria "pique-me"). McCartney achou que isso poderia acarretar problemas judiciais por apologia ao uso de drogas. A solução encontrada foi mascarar a expressão, aumentando bastante a linha de baixo da canção. A solução, além de resolver esse "problema", deu uma sonoridade forte e agressiva à faixa, que agradou em cheio ao grupo e ao produtor George Martin.

A segunda faixa de Abbey Road, "Something", era uma composição feita por George Harrison para a sua então esposa, a modelo Pattie Boyd. O processo de produção da foi longuíssimo; foram necessários 36 takes até que tudo ficasse ao gosto da banda. Mas o processo tinha começado muito antes das sessões de gravação daquele álbum. George havia composto a música durante as gravações do White Album, e durante as sessões de Get Back (expostas no filme Let It Be) é possível perceber o grupo ensaiando a canção. O curioso é que um dos solos é feito por Lennon, que normalmente pouco se arriscava a fazer mais que as guitarras base. Há, ainda, a participação de Billy Preston no piano. O verso inicial da balada, "something in the way she moves", foi tirado da canção de mesmo nome de James Taylor. Nesse caso não houve complicações judiciais, já que Harrison e Taylor eram bons amigos e faziam parte da mesma gravadora.

Somente na terceira faixa se ouve o vocal solo de Paul McCartney, prova de que ele esteve um pouco ausente do processo de produção do lado 1 do disco. Em "Maxwell's Silver Hammer" Paul é responsável também pelo piano e pelo sintetizador, usado por influência de George Harrison, que havia abusado do recurso em seu segundo álbum solo. Rumores dão conta de que o processo de gravação dessa música foi um dos mais desgastantes da história da banda. Após gravar alguns violões e guitarras John teria abandonado o estúdio por achar as ideias de Paul para a canção por demais esdrúxulas. Entres as excentricidades de Paul estavam os sons de martelo batendo em uma bigorna e a bateria, que deveria ser tocada sem o som da caixa. A melodia harmoniosa contrasta com a letra sombria, que trata de um maníaco que atacava suas vítimas com um martelo. Um pouco do humor negro do compositor que todos taxavam como aquele que só sabia fazer musiquinhas açucaradas e de amor.

Paul volta a atacar em "Oh! Darling", na qual trabalhou muito, em especial nos vocais. Ele passou mais de uma semana trabalhando os vocais para que ficassem o mais vigoroso e áspero possível. Uma das lendas em torno das divergências entre McCartney e Lennon diz respeito que todo o esforço feito por Paul foi para que John não cantasse a canção, que tinha muito mais a ver com a sua voz. No fim das contas, o próprio John gostou do resultado e parece que a gravação da faixa foi uma das mais tranquilas do processo de Abbey Road.

No álbum saiu também a segunda composição de Ringo Starr em um trabalho da banda. A ideia surgiu durante uma viagem do baterista, quando em um tour de mergulho soube que os polvos juntavam pedras coloridas em frente às suas tocas, como forma de se proteger, formando assim um jardim, daí "Octupus's Garden" (jardim dos polvos). Assim como em sua primeira composição ("Don't Pass Me By"), a canção traz uma melodia agradável e pueril. Nesse caso, Ringo contou com a ajuda de George, como fica claro no filme Let It Be, apesar da faixa ser creditada somente ao baterista. Assim como havia sido feito em "Yellow Submarine", a banda voltou a usar efeitos que reproduzem sons aquáticos, como bolhas e ondas. A preocupação em passar um clima de fundo do mar chegou ao ponto de George e Paul fazerem os backing vocals gargarejando. Mais uma vez John se arriscou em um solo de guitarra. George também fez o seu!

Para fechar o lado 1, uma das faixas mais longas gravadas pelos Beatles: "I Want You (She's So Heavy)". Na verdade tratam-se de duas canções independentes ("I Want You" e "She's So Heavy"), que foram gravadas em épocas diferentes (a primeira nas sessões de Get Back e a segunda nas de Abbey Road), editadas de forma intercalada sem nenhuma espécie de transição. "I Want You" predomina na faixa, trazendo os vocais e a levada blues da guitarra de Lennon.

"She's So Heavy" foi inserida duas vezes durante a faixa, sendo que o epílogo da mesma é o riff da canção se repetindo constantemente e intensificado com efeitos de overdub e um sintetizador. A faixa é interrompida abruptamente e muito se especula sobre o sentido disso. Há especulações de que aquela interrupção seria uma metáfora sobre o fim repentino da banda, que se reuniu em estúdio pela última fez para terminar aquela canção. Outras versões dão conta de que a fita simplesmente acabou naquele ponto e o aspecto de inacabado agradou aos músicos.


Como já foi dito, o lado 2 de Abbey Road remete a ideia de Paul McCartney de fazer um espécie de ópera rock. Por isso existe uma incrível combatiblidade entre uma faixa e outra, sendo difícil apontar onde termina uma canção e começa a seguinte. Há algumas exceções a isso, como, por exemplo, na música que abre o lado B – "Here Comes the Sun" – mas, em geral, essa parte do LP parece composta por alguns grandes medleys.

A segunda composição de George Harrison para o álbum, "Here Comes the Sun", é mais um retrato do clima turbulento que cercava os Beatles naquele ano. Ela foi composta justamente em um dia de folga das gravações do disco. Harrison associava os dias que tinha que passar no estúdio de Abbey Road e nos escritórios da Apple Records como um verdadeiro inverno. A metáfora surgiu quando ele pode se libertar, por alguns dias, daquele clima, passando seus dias livres na casa do amigo Eric Clapton. O sol da canção não faz menção somente ao astro que ilumina a Terra, mas a melhora do clima ao se distanciar dos Beatles. Uma influência ainda mais direta de Clapton é a inspiração do dedilhado da guitarra, assumidamente inspirado em "Badge", canção composta pelos dois e lançada pelo Cream.

Na sequência vem uma faixa composta por John Lennon inspirada na "Sonata ao Luar" do compositor Ludwig van Beethoven. Ele compôs "Because" após ouvir Yoko Ono tocar a peça clássica ao piano. John pediu que sua esposa invertesse a ordem da sequência dos acordes e, após alguma reestruturação e a adição da letra, a música estava pronta. Nota-se, assim como em "Maxwell's Silver Hammer" e "Here Comes the Sun", o uso de sintetizador Mogg, adicionado por influência de Harrison. Outra adição foi um cravo, tocado por George Martin.

Iniciam-se, então, os medleys idealizados por Paul McCartney. Há uma discordância quanto ao fato de haver um ou dois medleys a partir de "You Never Give Me Your Money", mas há uma clara interrupção entre "She Came in Through the Bathroom Window" e "Golden Slumbers", marcando o fim de um e o começo de outro. Apesar de haver uma sequência ininterrupta entre essas faixas elas não têm, necessariamente, qualquer continuidade temática ou musical.

McCartney, certa vez, declarou que apesar de haver a vontade de se fazer uma ópera rock nessa parte do álbum, os medleys acabaram surgindo com uma forma de reunir diversos trechos de canções inacabadas escritas por ele e John. A verdade, no entanto, é que a continuidade entre as faixas é tão fluída e natural que se torna quase impossível ouvir cada uma dessas canções em separado.

A música que abre o primeiro medley – "You Never Give Me Your Money" – é, na verdade, também um medley de quatro canções. Apesar de creditada só com um nome, "You Never Give Me Your Money" trata-se apenas da primeira parte da faixa, na qual Paul retrata sua insatisfação com o momento financeiro da banda, cantando e tocando piano. Esses problemas relacionados com dinheiro são um capítulo a parte e seria por demais longo descrevê-lo. Resumidamente, Paul se mostrava bastante contrariado com a intromissão de Alan Klein nos assuntos da Apple e da banda. Houve grandes discussões em torno desse tema, quando eles tentavam substituir o empresário da banda, após a morte de Brian Epstein, em 1967.

A faixa continua com "The Magic Feeling", na qual Paul muda o estilo de tocar o piano, dando uma levada mais honk-tonk, encorpando o vocal para algo mais parecido com o que fizera em "Oh! Darling". A faixa ganha um tom mais rock and roll em "One Sweet Dream", quando nota-se a presença da guitarra de Harrison. Para finalizar, a última canção traz as vozes de John, Paul e George contando até sete e entoando o verso "all good children go to heaven" (toda as crianças boas vão para o céu). Ao final entra um fade-out sobreposto com o som de cricrilar de grilos, que vão se intensificando até o princípio da faixa seguinte.

"Sun King", segundo John Lennon, foi inspirado em um sonho que, aparentemente, não fez o menor sentido, a não ser para compor a faixa. A letra é um compilado de palavras, escolhidas ao ermo, em diversos idiomas (francês, italiano, espanhol e até português). Lennon disse que ele e Paul foram escrevendo várias palavras que vinham a cabeça em diversas línguas, sendo que alguma delas foram tiradas de jornais.

O medley prossegue com "Mean Mr Mustard", na qual se percebe um retorno a estrutura original do grupo. A faixa soa parecido com o que foi feito pelo quarteto nos primeiros anos de carreira, especificamente em álbuns como
Help! e Rubber Soul. A letra foi alterada para haver uma certa continuidade com a de "Polythene Pam", composta por John e baseada um contagiante riff executado num violão de 12 cordas.

Esse primeiro medley é finalizado por "She Came in Thought the Bathroom Window", música cuja letra retoma um fato ocorrido com a banda no auge da Beatlemania, quando uma fã subiu vários andares de um hotel, escalando um encanamento, e depois entrou pela janela do banheiro do quarto de um dos Beatles. A faixa foi uma das mais demoradas para ser finalizada, tomando dois dias das gravações. Naquele mesmo ano a canção ganharia um cover de Joe Cocker, que havia estourado um ano antes com uma versão para "With Little Help From My Friends".

Inicia-se então um segundo medley com a balada "Golden Slumbers", inspirada em algumas melodias celtas que Paul havia ouvido. A letra foi retirada, em parte, de um poema de Thomas Dekker. A canção emenda com "Carry the Weigth", na qual Paul, mais uma fez, demonstra a insatisfação com a situação da banda, evocando para si o papel de carregar o peso do grupo. Não por acaso a faixa retoma outra canção na qual o baixista reflete sobre os conflitos entre os membros do grupo, "You Never Give me Your Money".

Uma quebrada no ritmo traz "The End", intoduzida por guitarra, regida pelos vocais de Paul McCartney, seguida por um solo de bateria (o único feito por Ringo Starr durante sua passagem pelos Beatles) e um outro de guitarra. Na verdade são dois solos de guitarra sobrepostos, fazendo uma espécie de duelo entre as cordas de Lennon e Harrison. Há um forte mudança melódica, trazendo um piano e os vocais Paul, com backings de John, entoando o que muitos consideram o epitáfio da banda: "...
and in the end, the love you take is equal to the love you make" ("e no fim, o amor que você recebe é igual ao amor que você faz").

Parace que é definitivamente o fim, mas vinte segundos depois o silêncio é interrompido por "Her Majesty", uma espécie de releitura irônica do hino nacional da Grã-Bretanha, com um dedilhado de violão inspirado em Robert Johnson.

Sessão de fotos para a capa de Abbey Road

E, finalmente, veio o fim anunciado na canção anterior. Depois daquilo, nunca mais os Beatles se reuniram para compor ou gravar algo juntos. Cada um deles seguiu seu caminho em carreiras solo bem-sucedidas, como no caso John, Paul e George, e numa vida de bon vivant, como no caso de Ringo.

Abbey Road ficaria imortalizado com o epílogo da carreira da banda mais importante de todos dos tempos. As dezessete últimas obras de um grupo que esteve junto por muito pouco tempo, mas que mudou a forma de se fazer rock, de se comportar e de se viver.

A capa do álbum, como tudo relacionado à banda, tornou-se um ícone da cultura pop, levando milhares de pessoas à rua que deu o nome ao disco para reproduzir a fotografia registrada por Iain Macmillan.

Quarenta anos depois, a experiência de ouvir
Abbey Road ainda traz um frescor aos ouvidos. Frescor de músicos que estavam no auge de sua criatividade e que puseram um ponto final em suas histórias tão épico que nem todas as divergências entre eles foram capazes de macular.

O Mofodeu trouxe, essa semana, em sua 67ª edição, um especial que celebra os quarenta anos dessa obra-prima, tocando-o na íntegra e dissecando todo o processo de gravação do disco. Para ouvir o programa, basta acessar:
www.mofodeu.com

Comentários

  1. ótimo texto, Vitor!
    tá de parabéns pelas letras e pelo programa...abraço! Ronaldo

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  2. Post muito bom.

    A capa do disco é uams das imagens mais conhecidas do rock...muito legal. Se um dia eu for visitar o local não sei se vou conseguir fazer o trajeto. Talve pela vergonha de ser mais um. Imagine a quantidade de pessoas que fazer isso todos os dias...rs

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