Rigotto's Room: Viciado em Morphine


Por Maurício Rigotto
Escritor e Colecionador
Collector's Room

No início da década de noventa – parece que foi ontem, mas já se vão quase vinte anos – aconteceu uma pequena revolução na forma de se ouvir música com o aparecimento do Compact Disc. O CD surgiu ainda nos anos oitenta, mas foi na virada para os noventa que passou a se popularizar, a ter preços acessíveis a quem não pertencia a classes elitizadas. A indústria fonográfica enxergou uma maneira de vender novamente os seus catálogos nessa nova mídia, criando um conceito de que o vinil da noite para o dia teria virado peça de museu e que o som digital e sem ruídos de CD seria infinitamente superior. Atraídos também pela praticidade de inserir um disquinho em uma gaveta e ouvi-lo de cabo a rabo sem a necessidade de virá-lo no meio da audição, a população engoliu o engodo e passou a substituir suas discotecas inteiras, se desfazendo dos discos de vinil em troca do moderníssimo disquinho prateado.


Como colecionador de discos, a principio me senti traído, ao imaginar que os próximos lançamentos de bandas que eu acompanho a carreira viriam apenas no novo formato, com suas capas e encartes reduzidos a ridículas miniaturas. Como esbravejar nada resolveria, tive que me aliar ao inimigo e descobrir os benefícios que a nova mídia traria. Uma das vantagens sem dúvida não era o som, que logo constatei ser bem mais pobre em definições que os bolachões. Gostei da prática do manuseio e de alguns recursos inovadores que os CD players ofereciam. Outra vantagem que logo constatei era que cada vez que eu comprava um vinil – e eu comprava-os compulsivamente – eu era recriminado ao chegar em casa, ao ser recebido com aquele olhar de censura como que a dizer: “Não acredito que ele comprou outro disco...” ou “Vai gastar todo o teu dinheiro em discos?” Com o CD, era só coloca-lo sob o casaco ao chegar e ele entrava em casa despercebido. Porém, o grande atrativo da novidade foi que começou a surgir títulos que era quase impossível de se encontrar em vinil. Artistas que nunca tiveram sua obra lançada no Brasil agora eram facilmente encontrados nas lojas de CDs, e havia catálogos em que poderíamos selecionar CDs importados e mandar vir. Não precisávamos mais depender do acaso, bastava encomendar e esperar uns vinte dias para ter o CD que quiséssemos em nossas mãos. Havia lojas de CDs com prateleiras inteiras dedicadas aos importados



Em uma dessas lojas, me deparei com vários títulos de CDs importados de bandas que eu nunca havia ouvido falar. Comprei muitos títulos por curiosidade. Alguns se revelaram grandes descobertas, e outros, frustrantes decepções. Um dos CDs era o da banda Treat Her Right e chamava-se Tied To The Tracks. Não sei o que me levou a comprá-lo, nem ao menos tinha uma capa atraente, mas ao colocá-lo para tocar, adorei a sonoridade blues rock da banda. Todo o disco é muito bom, com destaque para “Junkyard”, “Bad Medicine”, “Hank” e “King of Beers”. Li no encarte que a banda era formada por Mark Sandman e David Champagne nas guitarras, Billy Conway na bateria e Jim Fitting na harmônica. O grupo foi formado em 1984 em Boston e Tied To The Tracks era o seu segundo trabalho, de 1989. Fui atrás do disco anterior (de 1986) e do posterior What’s Good For You (1991), que é igualmente brilhante, incluindo ótimas covers como “From a Buick 6” (Bob Dylan), “Factory Girl” (Rolling Stones), “I Wish You Would” (sucesso dos Yardbirds) “Tease Me” (John Lee Hooker) e “The Same Thing” (Willie Dixon)


O Treat Her Right se separou após o lançamento de What’s Good For You, deixando como legado esses três ótimos discos. Aos curiosos, foi lançada em 1998 a coletânea The Anthology 1985-1990, e no ano passado saiu The Lost Album, com material inédito do grupo.



Em 1992 entrei em outra loja de discos e comprei mais uma dúzia de CDs de bandas novas, entre eles Glad You Weren’t There dos Screaming Iguanas of Love, Smoke ‘Em If You GotEm do The Reverend Horton Heat e Good do power trio Morphine. Coloquei Good para tocar e imediatamente fiquei maravilhado com a sonoridade exótica do grupo. O trio não tinha guitarra, era formado por saxofone, baixo e bateria e fazia um rock and roll com pitadas de jazz e blues empolgantes. Nos vocais e contrabaixo de duas cordas, estava Mark Sandman, o mesmo sujeito que havia sido o líder do Treat Her Right. Completavam a formação Dana Colley nos saxofones tenor e barítono (ex-integrante do grupo Three Colors) e Jerome Dupree na bateria. Sandman tocava com um slide um contrabaixo com apenas as duas cordas mais graves. “Só toco essas duas cordas, não tenho porque comprar as outras duas.”, dizia Mark Sandman, que além de bom músico, se revelava um ótimo poeta e letrista, com canções inspiradas em literatura beatnick como em “The Saddest Song”, “Have a Lucky Day”, “Claire” e “The Only One”.



No ano seguinte, o baterista Jerome Dupree deixa o grupo e é substituído pelo ex-Treat Her Right Billy Conway. Lançam o incrível Cure For Pain, com os clássicos “Dawna”, “Buena”, “All Wrong”, “Thursday”, “Candy”, “Sheila”, “Mary Won’t You Call My Name?” e “Miles Davis’ Funeral”.



Em 1995, o terceiro disco, Yes, trás a banda ainda mais entrosada e inovadora. Como se a sonoridade já não fosse suficientemente incomum e anti-convencional, Dana Colley passa a tocar um saxofone duplo, ou melhor, dois saxofones soldados um ao outro, com uma única boquilha em um dos sax e ligada ao outro através de um tubo. “Honey White” e “Super Sex” são os destaques do disco.



Com uma nova gravadora, a Rykodisc, o Morphine chega em 1997 ao quarto disco, Like Swimming, que mesmo mantendo a qualidade, mostrou-se um pouco inferior e menos inspirado que os três trabalhos anteriores do grupo. Mesmo assim, faixas como “”Early To Bed”, “Eleven O’Clock” e “Swing It Low” figuram entre as melhores já gravadas pela banda.



Poucos meses após lançar Like Swimming, o Morphine lança B-Sides & Otherwise, contendo lados B de singles, faixas incluídas em outros discos e muito material inédito, como as ótimas “Bo’s Veranda”, “My Brain” e “Kerouac”, que havia sido incluída em um disco-tributo ao escritor beatnick.



Entre 1998 e 1999, o Morphine trabalhou na gravação de seu quinto disco, o álbum que seria um divisor de águas na carreira da banda. Planejado para ser o mais ousado, bem arranjado e inovador trabalho do grupo, Mark Sandman tocou baixo de quatro cordas, guitarra, piano, órgão e trombone. Além de Billy Conway, o baterista original Jerome Dupree foi convocado e cada faixa teve duas baterias sendo tocadas simultaneamente. Além dos membros da banda, participaram das gravações Jane Scarpatoni (cello), Mike Rivard (contrabaixo acústico), Joseph Keller (violino) e um coro de vozes femininas.


No dia 03 de julho de 1999, o Morphine se apresentava ao vivo na cidade de Palestrina, perto de Roma, na Itália. Após as duas primeiras músicas da noite, Mark Sandman fala ao microfone, cumprimentando o público e anunciando “Super Sex”, que seria a terceira canção da noite: “Obrigado Palestrina! É uma linda noite! É ótimo estar aqui e quero dedicar uma canção super-sexy a todos vocês...”. Mark Sandman parou a frase pela metade e ficou imóvel por alguns segundos, em seguida caiu ao chão. Billy e Dana correram em sua direção e constataram, atônitos, que Sandman estava morto. Mark Sandman morreu no palco, durante um show, fulminado por um ataque cardíaco aos 46 anos.



Em 2000 é lançado The Night, o quinto álbum da banda. Belas canções como “Top Floor, Bottom Buzzer” e “Rope on Fire” apontavam um novo direcionamento para a música do Morphine, mas uma trágica fatalidade encerrou ali a carreira do grupo. Ainda em 2000 é lançado o sensacional CD ao vivo Bootleg Detroit, contendo dezoito músicas (muitas inéditas) de um show em Detroit em 1995, durante a turnê do álbum Cure For Pain.



A coletânea The Best of Morphine 1992-1995 é lançada no ano de 2003.



Mark Sandman viveu como um beatnick, sem nunca ter tido uma residência fixa. Abandonou seu emprego de taxista noturno em Cambridge (sua terra natal) para trabalhar em um pesqueiro no Alasca. Nos anos oitenta, morou por um ano no Rio de Janeiro, onde fez uma sólida amizade com o saxofonista brasileiro Leo Gandelman.



Dana Colley e Billy Conway se uniram a vocalista Laurie Sargent – uma fã declarada de Mark Sandman – e fundaram o Twinemen (nome inspirado em um quadro sobre gêmeos pintado por Sandman). O Twinemen já lançou os álbuns Twinemen (2002), Sideshow (2004) e Twinetime (2007).




Eu continuo cada vez mais viciado no som do Morphine, uma das melhores bandas surgidas nos últimos vinte anos. Aviso: Ouvir Morphine regularmente causa dependência.

Comentários

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  2. Acho o som do Morphine perfeito para aproveitar um bom whyskie e relaxar. Conheci a banda logo após a morte do Sandman. Lembro-me de ouvir algumas lendas sobre a morte dele. Inclusive que ele tinha acabado de tomar uma garrafa de Jack Daniel´s antes de morrer...

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  3. Já eu me viciei em Morphine ao ouvir "Buena" na rádio Ipanema FM de Porto Alegre, e não descansei enquanto não comprei o vinil do "Cure For Pain" de um amigo que o tinha conseguido meio que por acaso (não era tão fácil conseguir esse vinil em meados dos anos 90). O vício aumentou, e tive de ir atrás dos outros discos quando lançados. Sorte que a Trama lançou todos eles baratinho aqui no Brasil, e foi fácil comprar a coleção e suprir o vício.
    Prometo uma avaliação mais detalhada do "Cure For Pain" se houver interesse, pois esse disco, ao menos, é "audição obrigatória" com certeza! Para mim, o melhor dentre os excelentes lançamentos da banda!
    "Someday there will be a cure for pain..."

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  4. Realmente o som do Morphine é incrivelmente diferente e viciante,a primeira que vez ouvi foi um clipe nos idos dos anos 90,e descobri o grupo naquela época,
    pesquisem que não vão se arrepender,

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  5. Excelente matéria! Das bandas noventistas citadas eu ainda não conheço o Screaming Iguanas of Love, mas vou correr atrás.
    Quanto ao Morphine, é certamente uma das minhas bandas favoritas denre as surgidas na década de 90. Bandaça com discos obrigatórios!
    É isso aí!
    Abraço.

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  6. Sou absolutamente fã do Morphine...não tinha conhecimento da continuidade da banda com novo nome...tenho de verificar esse som urgentemente!

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  7. Esqueci de citar,ano passado saiu um CD duplo do Morphine chamado "At Your Service" que é fantástico, cheio de raridades e faixas ao vivo. Acredito que é a rapa do tacho. Essencial! Lembrando que a coletânea "The Best of Morphine 1992-1995" também tráz três faixas inéditas.

    Concordo com o Micael. "Cure for Pain" é o melhor álbum da banda. Fiquei com inveja de você ter o vinil, eu só tenho em CD. Aguardo a sua avaliação mais detalhada do disco.

    Quanto ao Twinemen, além dos três álbuns, consegui um ótimo duplo ao vivo chamado "Live in Chicago".

    Obrigado pelos comentários elogiosos.

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  8. Realmente, o Morphine era uma grande banda. É uma das minhas favoritas. O engraçado dessa história é que comprei o álbum Cure for pain às cegas, tudo por causa da ótima impressão que o selo Rykodisc me causava [e ainda causa]. Como raramente ajo dessa maneira, até que me dei bem.

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  9. Acabei de descobrir essa banda incrível. Pleno final de 2013 e só ontem, por acaso, esbarrei com Morphine. Já pesquisei e ouvi todas as músicas da banda, estou completamente encantada. As letras dele são tão poéticas, as melodias soam tão tristes, o arranjo deles é tão bom. Fecho os olhos e viajo, acompanhada de uma boa bebida. É perfeito.

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