Rigotto's Room: All Things Must Pass


Por Maurício Rigotto
Escritor e Colecionador


Em 1981 eu tinha 10 anos. De uma hora para outra, as coisas que eu mais gostava, que era puxar um caminhãozinho de plástico amarrado em um barbante, ou brincar com playmobil, perderam a graça, e novas descobertas surgiram deslumbrantes em minha vida. Ainda segui jogando bola por um tempo, andando de bicicleta e comprando gibis, mas repentinamente comecei a prestar atenção em música e adquiri uma paixão fulminante e eterna pelo Rock. Ao invés de novos carrinhos e brinquedos, passei a pedir discos de presente aos meus pais. Aos poucos, ganhei LPs do Led Zeppelin, Pink Floyd, Clash, Santana, Queen, Simon & Garfunkel, The Police e Bob Dylan. No recreio do colégio, ficava sem comer e guardava o dinheiro do lanche para comprar compactos em uma lojinha de discos que havia perto dos correios.


Nesta mesma época, o recente assassinato de John Lennon chocou e comoveu o mundo de tal forma que acredito que nenhum assassinato ocorrido nos trinta anos que se sucederam tenha desencadeado uma comoção mundial na mesma proporção. Consequentemente, as músicas dos Beatles e da carreira solo de Lennon passaram a tocar dia e noite em rádios e televisões, e acho que nunca se vendeu tanto disco dos Fab Four desde a explosão da beatlemania.



Lembro perfeitamente qual foi a primeira música dos Beatles que ouvi. Entrei na loja de discos e ouvi um compacto com a canção “She’s a Woman”. Sai de lá com uma coletânea do quarteto, meu primeiro álbum dos Beatles. Comprei (ou melhor, ganhei de minha mãe) também a coletânea Shaved Fish de John Lennon e o seu novo disco, Double Fantasy. As faixas “Imagine” e “Woman” tocavam exaustivamente nas rádios, quando numa tarde ouvi outra música que eu até então não conhecia e que me chamou a atenção por parecer muito com Beatles. Esperei o locutor anunciar o nome da canção. Tratava-se de “My Sweet Lord” de George Harrison. Reuni alguns trocados que eu tinha e corri para a loja de discos. Pedi pelo disco de George Harrison que contivesse “My Sweet Lord”, e o vendedor me mostrou um belo disco triplo que vinha embalado em uma caixa. Era o álbum All Things Must Pass, mas para minha decepção, custava uma fortuna, o equivalente a três LPs, e eu mal tinha grana para um disco simples. Vendo que o garoto não iria ter dinheiro para levar o disco, o balconista me mostrou dois compactos que reuniam quatro faixas do álbum. Em um compacto tinha justamente “My Sweet Lord” e “Isn’t It a Pity” no outro lado. O outro disquinho trazia “What Is Life” no lado A e “Apple Scuffs” no lado B. Comprei os dois. Ouvi a exaustão e passei a ir à loja para ouvir o álbum nos headphones, enquanto guardava cada centavo, cada troco da padaria, para comprar o tão sonhado disco. Após muitos dias de economia, arrecadei o dinheiro necessário e o comprei. Eu tinha agora o meu próprio All Things Must Pass, o disco mais caro da minha coleção de pouco mais de uma dúzia de vinis.



Fui incumbido de escrever um texto sobre esse disco de George Harrison para um grande especial sobre o fim dos Beatles e o primeiro disco solo de cada um dos integrantes após a separação, para o site Os Armênios. Cada colunista recebeu a tarefa de esmiuçar um álbum. Por razões sentimentais, eu escolhi escrever sobre o All Things Must Pass. Peço desculpas ao leitor por ficar divagando sobre o final da minha infância e meus primeiros discos, ao invés de já iniciar dissecando o álbum, mas é impossível para mim escrever sobre esse álbum sem despertar reminiscências emotivas. Obrigado pela sua paciência. Agora vamos ao disco.




George abriu o All Things Must Pass com “I’d Have You Anytime”, uma faixa que compôs em parceria com Bob Dylan. Entre os integrantes dos Beatles, George sempre foi o maior fã de Bob Dylan, tanto que, quando Dylan lançava um novo trabalho, era George quem o mostrava aos companheiros de banda. Enquanto Dylan se recuperava de um acidente de motocicleta, gravando com o The Band em uma fazenda em Woodstock, George apareceu para visitá-lo, e desde então se tornaram amigos muito próximos. Chegaram a passar um final de semana gravando músicas juntos em 1969, e desse encontro surgiu “I’d Have You Anytime”. A faixa 2 é “My Sweet Lord”, o maior sucesso do disco e de toda a carreira solo de George Harrison. Um ode a Hindu God Krishna, um mantra em louvor a Deus, “My Sweet Lord” estourou nas paradas do mundo todo. Pouco tempo depois, George foi acionado pela justiça como réu em uma acusação de plágio, pois “My Sweet Lord” era incrivelmente semelhante a “He’s So Fine”, sucesso do The Chiffons em 1963. Harrison argumentou no tribunal que teve a centelha para “My Sweet Lord” após ouvir a famosa canção “Oh Happy Day” nas vozes do The Edwin Hawkins Singers, mas foi condenado pelo plágio a ceder parte dos royalties das vendas de All Things Must Pass aos Chiffons. Alguns anos mais tarde, George compôs “This Song”, uma música que debochava do julgamento, com um videoclipe que simulava um tribunal. Vale lembrar que, aproveitando a publicidade do caso, os Chiffons também gravaram “My Sweet Lord”. Na seqüência tem “Wah Wah”, outra grande faixa do disco, e “Isn’t It a Pity”, composta por George em 1968 durantes as sessões de gravação do White Album dos Beatles. Rejeitada por John e Paul, acabou sendo o lado B do compacto “My Sweet Lord”.


O lado 2 inicia com “What is Life”, outro clássico que se tornou o segundo single do álbum. Na faixa, George é acompanhado por Eric Clapton e seu grupo na época, o Derek and The Dominos, além de Peter Ham e Tom Evans, da banda Badfinger. A próxima canção é “If Not For You”, de Bob Dylan. Dylan acabara de lançar a música no álbum New Morning e, ao mostra-la a George, este também quis grava-la. A faixa acabou fazendo sucesso em 1970 tanto com Dylan como com Harrison, e no ano seguinte voltou as paradas na voz de Olívia Newton John. Nos créditos do disco não consta quem gravou a harmônica na música, mas o baterista Alan White declarou em entrevistas que quem tocou foi John Lennon, que estava no estúdio ao lado gravando o disco Plastic Ono Band. O segundo lado tem prosseguimento com "Behind That Locked Door", composta em homenagem ao amigo Bob Dylan, "Let It Down", outra faixa rejeitada pelos Beatles, e "Run of the Mill".


O lado 3 trás mais cinco faixas, começando pela linda “Beware of Darkness”, seguida de “Apple Scruffs”, nome que os Beatles davam aos seus admiradores mais fanáticos e groupies que faziam vigília em frente a Apple Records e Abbey Road Studios, "Ballad of Sir Frankie Crisp (Let It Roll)", inspirada no proprietário original da mansão de George, "Awaiting on You All" e a faixa título. “All Things Must Pass” chegou a ser gravada pelos Beatles durante as “Get Back Sessions”, mas acabou preterida, somente vindo a tona no álbum Anthology vol. 3.


O quarto lado do disco trás as faixas "I Dig Love", "Art of Dying", recusada por John e Paul em 1966, “Isn’t It a Pity” (Version 2) e “Hear Me Lord”, que encerraria oficialmente o disco, se for levar em conta que os lados 5 e 6 são compostos por “jam sessions” instrumentais gravadas durante as sessões do álbum em si.


O terceiro vinil, chamado de Apple Jam, abre com “Out of The Blue”, com os Derek and The Dominos, George, Jim Price, Bobby Keys, Gary Wright e Al Aronowitz fazendo uma jam com mais de onze minutos de duração. Segue “It’s Johnny Birthday”, com menos de um minuto de duração, feita por George, Ringo e Mal Evans para presentear John Lennon em seu aniversário. O lado 5 encerra com “Plug Me In”, com George, Clapton, Derek and The Dominos e Dave Mason (guitarrista do Traffic).


O sexto e último lado do disco traz “I Remember Jeep”, com George, Clapton, Ginger Baker (Cream) e Klaus Voorman, e “Thanks for The Pepperoni”, interpretada pela mesma formação de “Plug Me In”.



O disco contou com George, Clapton e Dave Mason nas guitarras (Peter Frampton também, embora não creditado); Ringo Starr, Jim Gordon (Derek and The Dominos) e Alan White nas baterias; Klaus Voorman e Carl Radle (Derek and The Dominos) nos baixos; Gary Wright, Bobby Whitlock (Derek and The Dominos), Billy Preston e Gary Brooker (Procol Harum) nos teclados; Pete Drake no pedal steel guitar, Jim Price no trompete e Bobby Keys no saxofone, além do grupo Badfinger e do jovem percussionista Phil Collins, que tocou na faixa “Art of Dying”.


Klaus Voorman, Ringo Starr e Alan White (futuro baterista do Yes) se revezavam gravando o disco de George e o disco de John Lennon no estúdio ao lado. White afirma que é John Lennon quem toca gaita de boca em “If Not For You” e “Apple Scruffs”.


Em 2001 foi lançada uma nova edição em CD duplo, com cinco faixas bônus. São elas: “I Live For You”, uma faixa que sobrou das sessões e que foi regravada em 2000; “Beware of Darkness” em versão acústica; “Let It Down” em versão acústica e com acréscimos de efeitos de teclados feitos em 2000; “What Is Life”, com a primeira mixagem e acréscimos de trompete e oboé; e “My Sweet Lord” em uma regravação feita em 2000.



All Things Must Pass continua sendo um dos meus discos preferidos de toda a história da fonografia.

Este texto é uma parte de um grande especial sobre o fim dos Beatles e o primeiro disco solo de cada integrante após o término, feito para o site Os Armênios. Confira a íntegra em www.osarmenios.com.br




Comentários

  1. Ótimo texto....este disco é simplesmente fenomenal....é de uma honestidade impressionante e de um bom gosto impar....e que time de MUSICOS...só não consigo entender por que esta fora de catalogo aqui no Brasil

    ResponderExcluir
  2. Clássico do rock.Este blog é fenomenal,textos muito bem cuidados e escritos,pesquisa impressionante.Tinha a mesma idade do autor quando os Beatles e o rock mudaram a minha vida,não ligava para brinquedos ou afins,ligava para discos.

    ResponderExcluir
  3. Muito bom o blog, e o post também me remete à infância.

    Passe no meu se puder, estou te seguindo. Bjux

    ResponderExcluir
  4. O endereço do blog: http://urbgorgeous.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  5. Minha experiência com o All Things Must Pass tb se deu em 1981. Eu era um pouco mais velho que vc, 14/15 anos. Comecei a ler "O apanhador no campo de centeio", do Salinger, com o disco 1 na vitrola e segui assim, quase furando as bolachas, até o final das aventuras de Holden Caufield. Foi um casamento perfeito. Na verdade, mais que isso: eu, o livro e o disco fizemos, com o perdão do Robert Fripp,uma espécie de three of a perfect pair. E isso é uma parte importantíssima de mim. Abs

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Você pode, e deve, manifestar a sua opinião nos comentários. O debate com os leitores, a troca de ideias entre quem escreve e lê, é que torna o nosso trabalho gratificante e recompensador. Porém, assim como respeitamos opiniões diferentes, é vital que você respeite os pensamentos diferentes dos seus.