
Me deparei hoje com este excelente texto escrito pelo Pablo Villaça, um dos melhores críticos de cinema do Brasil e o meu favorito em relação à sétima arte. O questionamento que ele levanta é importante, e vai ao encontro da linha editorial da Collectors Room. Apenas troque filmes, cenas e atores por discos, músicas e bandas e ele se aplica perfeitamente à nossa maior paixão.
Sou um dinossauro. Ou talvez seja mais
correto dizer que pertenço a uma profissão jurássica e que, como
tipógrafos, ascensoristas e telegrafistas, estou fadado à extinção.
Não, não creio estar exagerando. Nos
últimos dias, dois incidentes particulares me levaram a refletir sobre a
natureza do que faço e seu prazo de validade enquanto atividade
profissional: o primeiro foi o breve e desconfortável debate entre o colunista David Carr e seu colega de New York Times, o crítico de cinema A.O. Scott; o segundo, o anúncio da demissão
(e extinção do cargo) da crítica Stephanie Zacharek, que escrevia para o
site Movieline. Curiosamente, conheço os três pessoalmente, tendo
conversado brevemente com Carr e mais extensamente com Scott e Zacharek
quando participei do seminário de crítica promovido pelo NYT em 2007,
mas não creio que o impacto destes acontecimentos tenha a ver com
qualquer grau de pessoalidade originado desta coincidência, mas sim com o
triste estado da curiosidade intelectual que venho observando nos
últimos anos.
Esta não é uma discussão nova, claro. Já
em 2001, quando tinha apenas sete anos de profissão, escrevi dois
artigos que buscavam esclarecer a função e a formação do crítico
cinematográfico de acordo com a visão que tinha (e tenho) sobre meu
papel profissional: “Pra que serve o crítico, afinal?” e “Formando um crítico de cinema“. Anos depois, voltei ao tema em posts como “Pra que serve a crítica?” e “Crepúsculo, Pevere, Rosembaum, Kael, Rossmeier, Atkinson”
– e, sinceramente, hoje percebo a futilidade do esforço. Quem
compreende o papel da crítica não precisa de maiores esclarecimentos;
aqueles que a encaram como “questão de opinião” já interromperam a
leitura no segundo parágrafo.
Considerem este post, portanto, como uma
reflexão interna publicada como forma de terapia, como uma forma de
negociar internamente meu valor e meu destino, representando, assim, o
terceiro passo rumo à aceitação de meu fim profissional, tendo já
passado pela negação e pela raiva (e mal posso esperar para chegar à
“depressão”).
De imediato, o óbvio: não existo como
árbitro do que é “bom” ou “ruim”. Nunca acreditei no papel do crítico
como guia de consumo, como alguém que existe para dizer o que o leitor
deve consumir culturalmente ou não. Escrevi várias vezes (e insisto no
ponto) que, num mundo ideal, todos deveriam ver todos os filmes –
incluindo aqueles que desprezo, já que, no mínimo, a bagagem adquirida
passaria a funcionar como base de comparações futuras (além de sempre
podermos aprender através de contra-exemplos). Assim, quando leio
comentários em meu videocast sobre Prometheus que “alertam” os
demais leitores para que não deixem de ver o filme “por causa deste
imbecil”, sinto vontade de perguntar em que momento, em minha fala,
sugeri que o filme fosse boicotado. Nunca sugeri boicote e jamais o
faria – e apontar o crítico como alguém que se julga no direito de ditar
o gosto alheio é uma das grandes falácias daqueles que detestam nossa
profissão.
Mas o contrário também é verdadeiro:
vira e mexe, alguém me envia um email ou tweet com o claro propósito de
me elogiar e dizendo que sou seu “crítico favorito, já que sempre
concordamos”. Sinto dizer (e aprecio a gentileza do gesto), mas isto não
é um elogio. O que a afirmação implica é que meu valor está associado à
minha capacidade de prever a reação do leitor e de passar a mão sobre
sua cabeça, aprovando seus gostos. Aliás, acredito exatamente no oposto:
o bom crítico é aquele que desafia seus leitores. Não como alguém “do
contra”, mas como um profissional que estudou a Arte, viu mais filmes e,
portanto, pode apontar elementos que passaram despercebidos ao
espectador.
E a palavra-chave, na frase anterior, é “estudou”.
É extremamente comum ouvir, como
resposta a uma crítica, que esta representa “apenas uma opinião”,
sugerindo, com isso, que todas as “opiniões têm mesmo valor”. Este,
claro, é o reduto do medíocre: em vez de apresentar argumentos que
embasem suas posições, julga mais simples e confortável apenas afirmar
que sua posição é tão válida quanto a de qualquer um apenas porque… ora,
porque ele a sentiu ou intuiu. Há, ainda, quem apele
para o lugar-comum do “é uma questão de gosto”, o que, em seu centro, é
apenas uma variação menos elaborada (se é que isto é possível) do “toda
opinião é igualmente válida”.
O que estas pessoas não percebem é que estão falando de algo diferente: da reação a
uma obra de arte. Um filme pode provocar o choro em um e o riso em
outro – e o crítico que tentar desmerecer a reação do espectador em vez
de buscar analisar como a obra a provocou estará cometendo um erro
básico (e é por esta razão que não acredito que o bom crítico se deixa
influenciar pela reação da plateia ao seu lado; seu foco deve estar
naquilo que se encontra na tela, não no público que a contempla). Assim,
quando alguém que despreza a crítica acusa a profissão de “ser do
contra”, de “sempre diferir do gosto popular”, está reagindo não contra a
argumentação do texto, mas à ideia (que não vem do crítico, mas dele
mesmo, espectador inseguro) de que ele seria estúpido por ter tido
reação diferente. Quanto a esta questão, meu amigo (e crítico fabuloso) Jim Emerson escreveu:
“A Crítica é mais do que a afirmação de um gosto pessoal. (…) Filmes são experiências emocionais (entre outras coisas) e as pessoas respondem a eles emocionalmente. Espera-se dos críticos, porém, que mergulhem mais fundo, que analisem, expliquem e interpretem.”
Ao contrário do que muitos parecem
pensar (“esse cara adora falar mal de tudo!”), não encaro a crítica como
um exercício de masoquismo, como a oportunidade de me torturar ao ver e
escrever sobre filmes que sei que detestarei. Antes de ser crítico, sou
um profundo apaixonado pelo Cinema (todo bom crítico o é) – e quando
entro numa sala de projeção, preparo-me para ser encantado pela obra que
verei. Se posteriormente publico uma crítica negativa, não o faço por
prazer, mas por obrigação profissional de articular racionalmente algo
que me desagradou ou desapontou – e o inverso é igualmente verdadeiro: a
crítica positiva é a manifestação racional do amor experimentado diante
da Arte.
E desta vez a palavra-chave é
“racional”. Sim, claro que “sinto” ao ver um filme. Choro feito um bebê
com frequência no cinema (para imenso constrangimento de meu filho), rio
alto de boas tiradas e me contorço na poltrona diante de uma cena
tensa. No entanto, se ao escrever sobre o que vi acabar me limitando a
descrever o que senti (“Chorei muito!”, “É emocionante!”, “Que filme
divertido!”, “Dá muito medo!”), terei escrito um texto que valerá para
uma única pessoa: eu mesmo. Descrever sentimentos é a opção populista do
crítico sem embasamento teórico; o bom profissional irá além:
explicitará como os realizadores dispararam aquelas emoções em seu público ou por que falharam ao tentar fazê-lo.
Daí a importância do estudo e da
bagagem. Ninguém daria ouvidos a um especialista em economia que jamais
houvesse estudado o assunto ou a um correspondente de guerra que jamais
houvesse saído do estúdio. Da mesma forma, o que diferencia o crítico do
espectador “médio” (um termo que uso não de forma pejorativa, como
muitos parecem querer acreditar, mas como descrição objetiva de alguém
que encara o cinema como passatempo descartável e não tem interesse em
enriquecer sua experiência como cinéfilo) é o conhecimento sobre teoria,
linguagem e história cinematográficas.
E só isto já desqualifica a posição de que “toda opinião é igual”, já que o que realmente importa são os argumentos que embasam cada opinião.
Dizer que a fotografia de um filme “é boa” ou que este é “bem montado”
nada significa; é uma afirmação vazia que não diz nada – e é por isso
que o bom crítico empregará exemplos retirados do próprio longa para
justificar suas posições, frequentemente usando as observações
disparadas pelo lançamento da semana para discutir elementos que dizem
respeito ao Cinema de modo geral.
(Aliás, se comentei antes que dizer que
sou um bom crítico “porque sempre concordo com sua opinião” é um elogio
vazio, devo reconhecer que sempre fico lisonjeado quando vejo alguém
tuitar ou “facebookar” que irá ler algumas de minhas críticas antigas
apenas pelo prazer de visitá-las. “Confesso que não tenho curiosidade de
ver todo filme que entra em cartaz, mas adoro ler todas as críticas que
você publica, mesmo sem ter visto o longa em questão”, escreveu um
leitor outro dia, naquele que provavelmente é o maior elogio que já
recebi justamente por apontar que o texto tem valor como análise
cinematográfica em si, não como guia prático de consumo.)
Porém, em vez de aproveitarem o
conhecimento do crítico para talvez aprenderem um pouco mais sobre a
Arte, há muitos que preferem apenas vê-lo como alguém “arrogante”, como
um “pseudo-intelectual” (a “ofensa” que é marca registrada daquele
inseguro quanto ao próprio intelecto ou à própria cultura); é mais fácil
acreditar, por exemplo, que fingi ter apreciado A Árvore da Vida do
que reconhecer o próprio comodismo ao sequer tentar entender o filme de
Malick. Quanto à “arrogância”, retorno a palavra a Jim Emerson:
“(É necessária) uma certa forma de arrogância para se fazer um filme, para se apresentar em público ou diante da câmera e para escrever uma crítica. (…) Dizer que alguém do showbiz (e isto inclui as pessoas que escrevem sobre ele) está exibindo ‘arrogância’ é como dizer que um bombeiro está exibindo ‘coragem’ ao entrar em um prédio em chamas. Você não poderia desempenhar seu trabalho sem ela. Mas não basta a arrogância. Preparo e experiência também são necessários.”
E é exatamente por isso que jamais me
defendi da acusação de “arrogância”: desacompanhada de estudo, é
reprovável; embasada por argumentos, é o que me permite ter a “audácia”
de publicar o que escrevo para consumo alheio.
Nada disso interessará por muito mais
tempo, porém. A ideia de que “na internet, todo mundo é crítico” é o que
parece dominar – mesmo que, como discuti acima, o estudo, a bagagem e a
experiência sejam fundamentais ao definir o autêntico “crítico”.
Infelizmente, como escrevi no twitter, hoje o que importa é o hype, não o pensamento crítico.
A crítica cinematográfica desaparecerá
ao lado dos filmes legendados. Morreremos afogados nos braços um do
outro, como expressões ultrapassadas do amor e do respeito
incondicionais pela Sétima Arte.
P.S.: Se você leu
este post na íntegra, não precisava ser convencido(a) do valor da
crítica; está habituado(a) a ler e aprecia a discussão racional – e
mesmo que tenha discordado de tudo que escrevi, certamente terá
capacidade de articular esta discordância. O problema reside naqueles
que pararam no título ou no segundo parágrafo, deram um “page down” para
ver o tamanho do texto, ficaram com preguiça e abandonaram a página. E
como estes representam a maioria, a crítica permanecerá condenada por
mais que a defendamos.
P.P.S.: Se você leu
este “P.S.” ao finalizar o rápido “page down”, vestiu a carapuça e
decidiu comentar negativamente apenas para fingir que leu tudo, a
fragilidade dos seus argumentos te denunciará. Nem tente.
Por Ricardo Seelig
Gostei do texto ! Mas não acho que morrerá não...crítica é um tipo de literatura...como bem diz o Pablo...
ResponderExcluirCreio que sempre haverá quem leia este tipo de texto somente pelo prazer de ler...
PS: Li a crítica do Pablo sobre o Prometheus antes de ler este texto... O Pablo deu nota três estrelas pro filme (de cinco no total)...logo considerou um bom filme (com vários defeitos)... não concordei muito com o texto dele, apesar da boa argumentação...mas o que acho impressionante é o nível de agressividade que encontramos na internet...tipo...chamam o cara de imbecil por ter postado uma crítica que em si nem tão negativa foi...imagina se a nota fosse de dois pra baixo...mandariam uma carta com veneno pra casa dele ?
O crítico expõe a opinião baseada em estudos e na análise do que se dedicou a criticar (e tem-se ideia que termo crítica é algo pejorativo, quando é uma análise que se faz com maior ou menor profunidade acerca de uma produção intelectual - minha interpretação). O que se vê em larga escala na internet é o analfabetismo funcional tomando conta por meio de blogs e páginas pessoais, do facebook principalmente, através de comentários rasos e incompletos de pessoas que mal leram um livro. Atualmente, a desinformação daqueles que acham entender de um determinado assunto por ler poucas linhas sobre ele na Wikipédia propaga essa visão minimalista da crítica e daquilo que se propôs a "analisar". Por ai se mata um pouco a cada dia.
ResponderExcluirO maior desafio da critica é lidar com o emocional do leitor, muitas vezes pessoas leêm criticas para encontrar opiniões similares as suas, um a forma de conforto psicológico para justificar seus gostos, logo, quando são contrariados criticam o autor e seu texto, não suas opiniões.
ResponderExcluirVisa longa ao debate racional!
O melhor texto sobre crítica cultural que já li. Concordo quando ele comenta que a crítica tem que ter o seu próprio valor como se fosse uma forma de aprendizado sobre aquele tipo de arte, seja ela cinema, música ou o que for. Às vezes eu também leio um texto sobre um filme ou disco só para me informar mais a respeito de um movimento, banda ou diretor.
ResponderExcluirVi agora a crítica dele do Prometheus e concordo com o cara quando ele fala sobre a ambição do filme, do resto discordo, o filme é uma bomba kkkk.
ResponderExcluirSobre o texto desconfio do ponto principal sem deixar de concordar com o que ele mostra. É verdade que a internet está infestado de analfabetos funcionais, pessoas politicamente corretas sem argumento e hipersensíveis. O que eu questiono é se as coisas não foram sempre foram assim e com o surgimento da internet,um meio de comunicação de alcance mundial que ainda conta com total anonimato, e que facilita o encontro, união e organização de sujeitos com as mesmas ideias(ruins e boas)tenha trago(trazido? sei la kkk)à superfície a real natureza daquela maioria que certamente a vinte anos atras não tínhamos contato e não estávamos expostos.
Isso é uma pergunta que adoraria que todo saudosista respondesse com sinceridade.
Falei e disse.
Só complementando pq sempre esqueço um ponto quando escrevo algo kkk. Considerem uma continuação do anterior.
ResponderExcluirPor isso que eu acho que a sensação de que a profissão dele vai morrer é enganosa, que a curiosidade intelectual está morrendo e todo esse discurso que já vi em vários lugares dizendo que essa época é uma merda. Acredito somente que foi dado uma ferramenta com grandes possibilidades para todos, e o que se vê é o que vi outro dia em um documentário sobre anabolizantes: Eles não te deixam agressivos, sem eles vc é um idiota, com eles vc é um super idiota hehehe.
Acho que as pessoas que tem curiosidade vão tirar proveito do que está aí e o potencial dessa ferramenta é enorme, e com interagir com essa pessoas é algo mais positivo a se considerar do que o lado negativo : dar voz para os idiotas. Eles SÃO maioria mas ,deixe que falem.É só bloquear.
PS: O Andre Barcinski comenta isso brevemente no texto que ele fez explicando porque encerrou a conta do twitter dele, e uma consideração que ele faz que concordo com ele é a que eu estou explicando(tentando) nesses comentários.
Legal o artigo, muito interessante, parabéns. Agora, já vi/li gente elogiar este tipo de texto que defende a liberdade de opinar, por exemplo, dizer que quem não gosta dos Beatles não entende nada de música. Aí é contraditório, querer que respeitem o seu gosto e menosprezar alguém que tem opinião diferente da sua, por mais "diferente" que ela seja. são os famosos "democratas" de fachada, mas no fundo adoram ditar (de ditadores mesmo) suas opiniões como verdades inquestionáveis...
ResponderExcluirPS.: eu gosto dos Beatles!
Assunto complexo pq fala de música, tecnologia, interação e consumo de públicos, gêneros jornalísticos, profissão de jornalista e mercado editorial.
ResponderExcluirTexto ótimo. Mas fico até meio assim de dizer algo além de: valeu pela reflexão. Não tenho o que comentar pq é muita coisa. Complexo.
Sensacional esse texto, vou até imprimi-lo pra que não se perca. Dá vontade de reler. Os comentários são muito embasados, fortes. Apesar do tom profético, talvez a profissão de crítica acabe, mas não o ato de criticar. Assim como a profissão de músico está cada vez mais difícil de se sustentar, mas o ofício permanecerá. A ampla democratização de todas as ferramentas culturais e tecnológicas para se produzir algo com qualidade está colocando uma concorrência brutal pela atenção das pessoas, nas quais nem sempre existe um filtro que consiga separar os profissionais sérios e dedicados unicamente ao assunto dos aventureiros, que diga-se de passagem, também podem ser muito talentosos e fazerem boas críticas. Também a possibilidade de se comentar diretamente ao autor da crítica pode expô-lo a fatia maior e mais desagradável do público leitor, que é o leitor medíocre. E parece que esse é o que tem o maior fascínio em comentar. No jornal, o cara não sabia muito o alcance da crítica, mas duvido que nas esquinas tb sua crítica não fosse malhada. Somado a isso, temos um forte processo de emburrecimento na sociedade (não só brasileira, mas mundial) e uma inversão de valores - a informação passou a ser mais importante do que conhecimento. Ou a enxurrada de informação não se converte em conhecimento ou não gera análise. Ela por si só já satisfaz o público.
ResponderExcluirAbs,
Ronaldo