Carcass: crítica de Surgical Steel (2013)

Se o retorno do Black Sabbath polarizou atenções de quase todo o cenário músical e teve em 13, primeiro trabalho de estúdio com Ozzy Osbourne desde 1978, o disco mais aguardado de 2013, coube ao Carcass chacoalhar de forma parecida os subterrâneos do heavy metal. Por linhas tortas, Jeff Walker e Bill Steer, dois doentios garotos de Liverpool, geraram expectativa semelhante ao quarteto de Birmingham ao anunciar que quebrariam o hiato de 17 anos com um novo álbum de inéditas.

Ainda que em um universo bem mais restrito, Surgical Steel teve impacto congruente ao de 13 no sentido de simbolizar o renascimento dos fundadores de um gênero. Ou de várias vertentes dele. Se o Sabbath criou o heavy metal e é o pai de seus conceitos centrais, o Carcass é um dos pilares de pelo menos três ramificações oriundas desse ponto de origem: o death metal em si, o goregrind/grindcore/splatter e o death metal melódico, que se consolidaria posteriormente por meio de uma parcela de bandas suecas no que passou a ser chamado de Gothenburg sound.

Em outras palavras, Surgical Steel teve acoplado a si uma aura especial desde o início de sua concepção. Uma aura que representava uma espécie de selo de qualidade, mas ao mesmo tempo também deixava espaço para a dúvida. Que mesclava a expectativa pela volta do maior nome do death metal britânico com a incerteza sobre o resultado prático e concreto desse comeback. Que rumo o novo disco tomaria? O trilhado por Necroticism - Descanting The Insalubrious (1991) e Heartwork (1993), duas pedras fundamentais do estilo, ou o tortuoso caminho percorrido pelo irregular Swansong (1996)?

A resposta começou a ser delineada no fim de junho, quando o primeiro single, "Captive Bolt Pistol", vazou. A confirmação definitiva veio quando o álbum inteiro ficou à disposição na internet, ainda em agosto. A essa altura, o jogo já estava ganho e pairava uma única e nítida certeza: Jeff e Bill voltaram famintos. Constatação que, por si só, deu as garantias necessárias para afirmarmos que o novo trabalho seria brilhante.

Oficialmente, Surgical Steel saiu só em setembro, bem depois de quase todo mundo ouví-lo. Situá-lo na discografia da banda não é tarefa difícil. A primeira impressão é de que ele está estrategicamente no meio do caminho entre Necroticism Heartwork. Algumas audições depois, entretanto, constata-se facilmente que o mesmo se aproxima muito mais do segundo, sendo uma continuação natural de hinos como, por exemplo, "Buried Dreams", "Embodiment" "No Love Lost", "Doctrinal Expletives" e, claro, "Heartwork", faixa-título do álbum.

O que muda de um para o outro, então? Muita coisa. Apesar da proximidade em termos de estrutura das composições, a qualidade de execução, o impacto das linhas melódicas, os arranjos e, sobretudo a produção, são amplamente superiores. Colin Richardson, que cuidou da gravação, e Andy Sneap, responsável pela mixagem e masterização, fizeram um trabalho invejável. Som cristalino e ainda assim absurdamente agressivo. Bem timbrado, pesado e incisivo nas medidas certas para realçar ao máximo cada detalhe da desgraça em forma de música a qual se propõe o Carcass.

As linhas vocais e a forma com que Jeff Walker as canta são dignas de aplauso. Não bastasse ser o frontman que é, o cara ainda segura a bronca no baixo. O ponto alto de Surgical Steel, porém, ninguém tira de Bill Steer, que tem atuação simplesmente de outro planeta. Riffs brutais, velozes ou com groove e, acima de tudo, criativos, são o carro-chefe. Tudo afinado alguns tons abaixo, em si, e temperado com solos melódicos no ponto exato, destilando toda sua influência de classic rock e, principalmente, NWOBHM. Apesar do longo período afastado do death metal, Bill entra fácil no top 3 dos guitarristas do gênero ao lado de Chuck Schuldiner e Trey Azagthoth. Se ouvissem o disco, ambos ficariam em um misto de orgulho e inveja, tamanha excelência do trabalho de guitarra.

Por falar em inveja, Michael Amott deve estar se contorcendo. Felizmente, o guitarrista não participou da empreitada e em momento algum sua ausência é sentida. Além de Jeff e Bill, atualmente o Carcass conta com Daniel Wilding e Ben Ash, mas apenas o primeiro participou de Surgical Steel, tendo bom desempenho ao substituir o baterista Ken Owen, membro fundador da banda, mas impossibilitado de tocar desde 1999 por conta de um AVC. Ben chegou depois e, em estúdio, foi Bill quem gravou todas as guitarras das 11 canções.

Tudo se inicia com a instrumental "1985" e seu título para lá de sugestivo, pois trata-se de uma intro criada realmente em tal ano, quando a banda ainda se chamava Disattack, uma espécie de embrião do que viria a ser o Carcass. Assim que surgem as primeiras notas, impossível não remeter diretamente a uma mistura entre "The Hellion", do Judas Priest, e o comecinho de "Caught Somewhere in Time", do Iron Maiden. Logo em seguida, a curta e urgente "Thrasher's Abbatoir", lembrando os melhores momentos de Reek of Putrefation (1988).

A trinca "Cadaver Pouch Conveyor System", "A Congealed Clot of Blood" e "The Master Butcher's Apron" forma, talvez, o principal momento do álbum, com destaque para as duas últimas, disparadas as melhores de todo o play. A medalha de prata fica com outras duas canções obrigatórias e com nomes escatológicos: "Noncompliance to ASTM F 899-12 Standard", dona de um solo esmagador, e a pesadíssima "316 L Grade Surgical Steel".

No fim das contas, a ótima "Captive Bolt Pistol" acaba até ofuscada se olharmos Surgical Steel em totalidade. Excelente, mas um tanto quanto genérica perante a interessantíssima "The Granulating Dark Satanic Mills" e seu refrão enigmático - ♫ six, zero, two, six, nine, six, one... ♫ -, bem como o encerramento estupendo com "Mount of Execuiton", épica até dizer chega e uma das melhores também. Isso para ficarmos apenas no track list tradicional, já que outras quatro faixas inéditas foram gravadas - "A Wraith in the Apparatus", "Intensive Battery Brooding", "Zochrot" e "Livestock Marketplace" -, mas não entraram.

Em seu habitat, que é o da música extrema e que congrega vasta gama de lançamentos de qualidade em 2013, não há dúvidas de que Surgical Steel se sobressai e praticamente oblitera a concorrência. Um verdadeiro marco na cena death metal como há tempos não se via. Além disso, um álbum para cooptar neófitos e recém-iniciados ao necrotério em que repousa incólume o legado do Carcass, assim como fez Heartwork, seu irmão mais velho, 20 anos atrás.

Nota 9,5



Faixas

1 1985 (instrumental)
2 Thrasher's Abattoir
3 Cadaver Pouch Conveyor System
4 A Congealed Clot of Blood
5 The Master Butcher's Apron
6 Noncompliance to ASTM F899-12 Standard
7 The Granulating Dark Satanic Mills
8 Unfit for Human Consumption
9 316L Grade Surgical Steel
10 Captive Bolt Pistol
11 Mount of Execution

Por Guilherme Gonçalves

Comentários

  1. Excelente resenha ! Carcass dando aula, como sempre.

    Eu estou com um bloqueio mental para falar o nome desse álbum. Em duas oportunidades eu o chamei de "cirurgical steel", mas acho que nem existe essa palavra kkkkkkkk

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  2. Um amigo explicou o Carcass da seguinte maneira: O Carcass são os Beatles do metal extremo.

    E acertou!

    Disco do ano, com certeza!!! \,,/_

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  3. Bom demais, pra mim o melhor disco do ano. O mais interessante dessa banda é perceber que eles conquistaram milhares de fãs, mesmo depois que já não existiam mais, como é meu caso. Uma das minhas bandas preferidas. Memorável poder acompanhar um lançamento deles, principalmente com essa qualidade.

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  4. Gostei muito do trabalho. O Carcass é uma banda necessária. Curto as várias fases, mas a guinada de "Heartwork" e "Swansong" foi demais. Adoro estes dois trabalhos.

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  5. Preciso escutar este disco. Carcass passou pelo gring/splatter e terminou num death melódico. Saudades de Simphonies of Sickness e Swansong.

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