Se tivesse sido gravado no Brasil, eu não hesitaria em apontar Amoroso, de João Gilberto, como o melhor disco brasileiro de todos os tempos. Como não foi, posso apenas declarar que é, desde que saiu, meu disco mais querido e ouvido, permanentemente. Tanto que a cópia atual já é a quarta ou quinta, com as anteriores vencidas pela paixão e o uso.
Amoroso - como todos os discos de João - é perfeito, mas é mais, porque é mais brasileiro e mais internacional. João canta Gershwin em inglês, Consuelo Velasquez em espanhol e Bruno Martino em italiano. E Tom Jobim, Chico Buarque, Haroldo Barbosa, Newton Mendonça, o Brasil.
Quando canta "'S Wonderful" e se ouve, pela primeira vez, o sotaque baiano de João, é quase engraçado. Mas logo se descobre que nada ali é acaso ou limitação. Ou alguém é capaz de imaginar que, sofisticado como é, com o mitológico ouvido que tem, João não seria capaz de reproduzir com precisão absoluta as sonoridades da letra original? Mas não: ele preferiu uma maneira de dizer a letra onde as palavras inglesas soassem como se brasileiras fossem - em rigorosa harmonia com o ritmo e o clima sinteticamente brasileiros que ele criou com sua voz, violão e gênio. Uma das expressões máximas das práticas (teorias) de antropofagia cultural de Oswald de Andrade. E da "universalidade do regional" de Mário de Andrade. Assim, um clássico do melhor jazz americano, uma canção já mil vezes cantada de mil formas, não só resulta e soa como nova na interpretação de João como indiscutivelmente brasileira, inclusive a letra em inglês.
"Estate" é, talvez, entre todas as canções que amo de meu artista mais querido, a mais amada. Escrita na década de 1950 pelo italiano Bruno Martino, a música virou outra depois de João, como o autor e os críticos italianos reconhecem. O que era uma música de piano-bar como tantas do estilo night club que marcou a música italiana da época, com João ganhou uma harmonização sofisticada, elegante e surpreendente, como as já belas sonoridades da letra italiana valorizadas ao máximo através do "abrasileiramento" sonoro integrando ao ritmo e ao som do violão. E mais: João eliminou da letra original a desamorosa expressão "ti odio" ("te odeio"), que precedia as palavras de Martino sobre o verão (estate, em italiano), numas de "te odeio, ó verão, pelos beijos perdidos, amores, ilusões etc ...".
Com João, o verão de Martino perde o ódio por tudo de bom e bonito que fez nascer, terminar e se transformar em clássico universal contemporâneo - nas vozes que melhor ouvem, segundo dizem e escrevem.
"Wave", a original, está em "moroso, junto com a hitchcockiana versão de "Retrato em Branco e Preto", de tirar o fôlego. E o não menos clássico "Triste", como veio primeiro à luz do som.
O disco, a obra-prima, foi penosamente produzido por um doce amigo americano, craque do mundo da música, chamado Tommy Li Puma, produtor de Miles Davis para cima e legionário do joão-gilbertismo militante. Arranjos de Claus Ogerman, o mestre que jobino-gilbertizou o jazz com precisão germânica e mãos de seda.
Um disco onde nada é de mais ou de menos, e a extrema complexidade soa amorosamente clara e simples, junto, dentro e em volta da voz de João.
P.S.: se for um disco gravado no Brasil, o favorito é Brasil - o disco -, com Caetano, Gil e Bethânia sintetizando a música e a mágica da Bahia e do Brasil - o país. Obra-prima absoluta em design, repertório, arranjos (de Johnny Mandel) e interpretações, cada um exercendo sua luminosa individualidade a partir, em volta e além do gênio.
(Texto escrito por Nelson Motta, Bizz#008, março de 1986)
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