Discoteca Básica Bizz#014: Bob Marley - Natty Dread (1974)


O pop negro contemporâneo, em raros e intensos momentos, cometeu o pecado mais temido por qualquer religião: destruir a fronteira existente entre o sagrado e o profano. 

Durante toda a primeira metade do século XX, as culturas afro-americanas pareciam distinguir claramente a música divina da música demoníaca. Tanto que vários cantores de blues, no final de suas vidas, se transformaram em reverendos protestantes e passaram a cantar spirituals. Nunca vice-versa.

O soul modifica esta situação. Ray Charles, Sam Cooke e James Brown uniram o gospel ao rhythm and blues, sem cerimônias. Na Jamaica, final dos anos 1960, aparece outra combinação explosiva: os cânticos da religião rastafari se unem aos ritmos sedutores do ska e do rock steady, produzindo o reggae. Bob Marley foi o principal artífice e divulgador desta nova música. Devoção ou sacrilégio?

Natty Dread é um disco decisivo na carreira de Bob Marley, seu primeiro passo "solo" em direção ao mega estrelato. Inicialmente, os Wailers foram um trio vocal composto por Marley, Bunny Wailer e Peter Tosh. Com esta formação, mais a famosa seção rítmica dos irmãos Barrett (Aston no baixo e Carlton na bateria), eles chegaram a lançar dois LPs internacionais, já pela Island, extremamente bem recebidos pela crítica e pelos músicos de rock (como Eric Clapton, que gravou "I Shot the Sheriff"). Mas, em 1974, tanto Peter Tosh quanto Bunny Wailer abandonaram o grupo, falando em divergências, ou religiosas ou políticas ou profissionais. Bob Marley assume a liderança do que restou dos Wailers (os irmãos Barrett) e começa imediatamente a gravar o álbum Natty Dread, com a participação dos teclados de Bernard "Touter" Harvey, da guitarra do americano Al Anderson, um naipe de metais e o vocal das I-Threes.

Política e religião, diversão e militantismo convivem problematicamente nos discos reggae. A tensão entre esses opostos é a fonte de toda a riqueza musical de Bob Marley. O rastafarianismo tem aspectos interessantes (a reinterpretação subversiva dos textos bíblicos, o combate a todas as formas de opressão, o abandono da esperança no paraíso celeste), mas também possui facetas ingênuas e até mesmo ridículas (maniqueísmo - a Babilônia é a origem de todo mal, milenarismo político, culto a Hailé Selassié). Marley não escapa destas contradições. Natty Dread é a melhor prova: seu disco mais brilhante, mais furioso, mais sincero. Ao mesmo tempo, seu disco mais frágil e mais poderoso.


Vários clássicos de Bob Marley estão aqui presentes: a conhecidíssima "No Woman No Cry", a incandescente "Lively up Yourself", o hino rasta "Natty Dread". "Lively up Yourself" e "Bend Down Low" são regravações de hits jamaicanos dos anos 1960. "Rebel Music (3 O´Clock Road Block)" é um ataque direto contra os abusos policiais: poderia ser um retrato fiel das favelas brasileiras. "Them Belly Full (But We Hungry)" poderia ser mais uma ressentida denúncia da desigualdade social. Mas Bob Marley dá a volta por cima com versos surpreendentes para quem pensa que reggae é exaltação do sofrimento ou puro lamento: "Esqueça seus problemas / Esqueça sua tristeza / E dance".

Instrumentalmente, Natty Dread é um disco límpido, cristalino. Muitas das inovações produzidas pelo reggae posterior, do dub à utilização de baterias eletrônicas, já estão anunciadas em suas faixas. Foi através de suas ousadias rítmicas e instrumentais, e não pela filosofia rastafari, que o reggae influenciou todo o cenário pop dos anos 70/80. 

Mas isto na verdade não é tão importante. Bob Marley, em discos como Natty Dread, transcendia as limitações do rastafarianismo e o dogmatismo reggae. Bob Marley fez músicas excelentes. Isto basta.

(Texto escrito por Hermano Vianna, Bizz#014, setembro de 1986)

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