Três anos depois do verão punk, o establishment pop ainda lambia suas feridas. Aqueles Sex Pistols de Malcolm McLaren eram uma brincadeira de mau gosto? E - impensável - se eles fossem importantes, mesmo sendo uma brincadeira de mau gosto? Aliás, se tudo aquilo fosse importante exatamente por ser uma brincadeira de mau gosto?
Desde os Beatles, os anos 1960 e a politização/psicodelização do rock, a indústria não via questões tão profundas e tão graves ameaçando as regras do (seu) jogo. A primeira metade dos anos 1970 trouxe uma paz confortadora, em que bons negócios eram possíveis com um mínimo de tumultos e confrontos. A indústria tinha um produto de aceitação certa e imediata, e os consumidores pareciam felizes. Por que e de onde vinha essa insurreição? E que momento péssimo haviam escolhido para atacar: exatamente quando, dos clubes gay underground, a disco music avançava sobre as hordas de adolescentes. Mas o pior ainda estava por vir: em 1979 o establishment descobriu que a rebelião tinha um cérebro além de uma voz. E foi London Calling, do Clash, que proclamou isto.
O Clash surgira na primeira hora do verão londrino de 1976, reunindo Joe Strummer, com uma carreira de performances no metrô e à frente de uma banda de pubs (os 101'ers); Paul Simonon, um estudante de arte que jamais havia pegado num baixo; e Mick Jones, que também vinha da cena de pubs. Primeiro Tory Crimes, e depois com Topper Headon na bateria (e por pouco tempo com o guitarrista Keith Levene, futuro PIL, completando um quinteto), o Clash abriu concertos dos Pistols em 1976 e, um ano depois, assinou um contrato vultoso para a época, com duzentos mil dólares de adiantamento.
Os dois primeiros discos desse contrato, The Clash (1977) e Give 'Em Enough Rope (1978) - já revelavam claramente o que o Clash pretendia: de dentro da barragem alucinante de decibéis erguida por Jones, Strummer cantava articuladamente uma inquietação social e política que os Pistols conheciam, mas tratavam com um ódio brutal e amorfo. Mas, na época, a forma triunfou sobre o conteúdo, iludindo a todos, sem sequer antecipar o que seria London Calling.
Lançado em meados de 1979, o disco foi um clarão de lucidez e coerência que nem o rock nem o Clash conheceriam depois. As dezenove faixas do álbum duplo - a última, "Train in Vain", não está creditada na capa - interligam-se para formar ao mesmo tempo um painel da Inglaterra sobre Margaret Thatcher - relutantemente multirracial, bacia de fermentação de ódios e frustrações - e de um mundo apenas aparentemente sob controle, mas impulsionado por armas, drogas e guerras sob encomenda. A música tem uma riqueza de texturas que o punk desconhecia. O Clash canta o ska e o reggae pesado da Londres negra ("The Guns of Brixton", "Rudie Can't Fail". "Wrong 'Em Boyo") e puxa o longo fio ancestral que vai até os anos 1950 ("Brand New Cadillac") e o jazz ("Jimmy Jazz").
O impacto de London Calling abriu clareiras em todas as frentes. Para as platéias punk ele disse que a fúria podia e devia ser organizada, e que a lucidez e a curiosidade eram as únicas saídas estéticas possíveis antes da caricatura e da dissolução. Para o resto do público, o álbum restaurou a fé num gênero em visível decadência, o rock. Para o próprio Clash o disco foi a bateria energética que o impulsionou freneticamente durante um inacreditável par de anos - e o álbum triplo Sandinista! (1980) - até caírem exaustos ao chão das realidades mesquinhas do business, ícaros modernos deixando no ar o traço do seu vôo.
(Texto escrito por Ana Maria Bahiana, Bizz#050, setembro de 1989)
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