Esta é a história que se conta: Charles Edward Anderson Berry - um guitarrista, cantor e cabeleireiro de 29 anos - e seu amigo pianista Johnnie Johnson apareceram nos estúdios da gravadora de Leonard Chess, em Chicago, num dia de 1955. Vinham munidos de um bilhete de apresentação escrito por Muddy Waters e uma tosca fitinha demo com duas músicas: um blues tradicional ("Wee Wee Hours") e uma "novidade", como Berry a definiu. Uma fusão de R&B e country saltitante intitulada "Ida Red", adaptada de cançonetas anônimas da região de St Louis, terra natal de ambos. Chess torceu o nariz para o blues, mas adorou a "novidade". Pediu que Berry arredondasse a música, que a deixasse dançante, escrevesse uma letra nova com um nome de mulher mais interessante e, sobretudo, polisse sua voz de tenor de forma que não parecesse mais tão negra.
Assim nasceu "Maybellene", e o passo seguinte de Chess foi dar uma misteriosa "parceria" ao DJ Alan Freed, garantindo assim uma massiva execução naquele que era um dos programas mais quentes do rádio americano, Moondog Matinee. "Maybellene" foi um sucesso estrondoso e esta história, que a memória hoje elíptica e seletiva de Berry não confirma nem desmente, é absolutamente exemplar tanto de sua carreira - uma mistura diabólica de gênio e oportunidade - quanto de toda a gênese do rock and roll. Ali estava o talento intuitivo de um artista popular negro compreendendo a oportunidade histórica de misturar estilos brancos e negros, confrontando-se com a argúcia dos intermediários brancos em adaptar sua descoberta às necessidades do mercado. Chess entendeu o que o indignado Johnnie Johnson se recusava a ver: que Berry era um bluesman medíocre, mas um genial inventor de "novidades". E que a América branca, a que tinha dinheiro para comprar discos e vontade de consumir "novidades", estava pronta para elas.
Quem explorou quem? A audição desta The Chess Box revela o óbvio: que no rock, como na vida, não há respostas simples. A coleção de faixas selecionadas nos arquivos da Chess Records tem a desigualdade fulgurante da carreira de Chuck Berry. Estão aqui todos os momentos em que seu talento "novidadeiro" conjurou todos os demônios certos. O repertório de meia dúzia de fraseados de guitarra com o qual ele escreveu o glossário do rock para o instrumento, a ser decorado por Beatles, Stones e depois ampliado por Hendrix. A fusão perfeita de quase todos os estilos populares americanos, brancos, negros e mestiços, numa argamassa ao mesmo tempo sólida e flexível que se chamou rock and roll.
Sua absoluta, genial capacidade de contar longas histórias em poucos versos firmemente amarrados à batida, seu vocabulário ao mesmo tempo precioso e alucinado, escorreito e gauche, suas cápsulas de um universo sobre o qual escrevia de fora como um observador curioso e oportunista - o universo branco juvenil, de carros, bailes e ginásios. De Dylan a Bruce Springsteen, não houve poeta rock que não fosse tributário de Berry, da longa saga de "Havana Moon" aos diálogos interiores de "Little Queenie".
Mas aqui também estão os esboços e diluições de cada um desses momentos: uma série de fillers e bobagens com que Berry enchia compulsivamente o vinil, na sede de capitalizar mais uma necessidade de seu público. Uma polca? Um bolero? Quem sabe uma balada? Mas - Berry, rock and roll - esta é a sua vida: luzes e desvãos, genialidade e diluição, explorados e exploradores num só abraço. No final, saímos todos ganhando.
(Texto escrito por Ana Maria Bahiana, Bizz #058, maio de 1990)
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