Em 1980, nas primeiras linhas de uma resenha à recém-lançada versão brasileira do álbum Soldier para a revista SOMTRÊS, o jornalista José Augusto Lemos chamou a atenção para o fato de Iggy Pop, infelizmente, não ser tanto e tão bem ouvido quanto merecia aqui no Brasil, e atribuiu a culpa disso às gravadoras.
Acontece que décadas depois e já sem o embargo de gravadoras, o lamentável fato é que Iggy ainda não é escutado com a atenção merecida nesta república federativa. A razão? Tenho meus palpites. O fato de ter sido alçado ao posto de padrinho da feroz brigada punk acabou por afastar de sua obra daqueles afeitos a uma concepção "mais clássica" de rock, invariavelmente fãs de bandas como Led Zeppelin e Black Sabbath, que com a ascensão da punkadaria acabaram sendo relegadas a um ostracismo do qual só emergiriam na década de 1990. Uma certa mágoa?
E há o preconceito apoiado no lugar comum repetido como um dogma: "música barulhenta e mal tocada". Ora, tais bobagens deveriam ser deixadas de lado, até porque há de se lembrar que tais bandas hoje sagradas, tais como os próprios Led Zeppelin e Black Sabbath, foram durante anos desdenhadas como "lixo pesado e barulhento". Além do mais, Iggy não é só isso. The Stooges, a banda na qual ganhou notoriedade, realmente foi precursora de toda aquela revigorante selvageria que se convencionou chamar punk rock. No entanto, Iggy em si transcende sua tosca (no melhor sentido da palavra) e imprescindível banda.
Como cantor, Iggy Pop é uma das melhores gargantas do rock. Como o próprio José Augusto aponta em seu texto, uma irreverente fusão entre Mick Jagger e Lou Reed. Como performer, grande candidato a melhor da história do rock. Um homem elétrico, pulsante, feroz mesmo - no início dos anos 1970, um jornalista americano descreveu-o após assisti-lo com os Stooges como "um cara com uma presença de palco impressionantemente sexual, mas há ainda algo mais inacreditável: esse cara tem um cérebro! Dá a impressão de que se você transar com ele, ele vai querer conversar com você depois!” - e continua assim, mesmo hoje, aos quase 70 anos de idade.
Como letrista, no mínimo de uma exuberante versatilidade: ora, o profeta do caos, quase um Rimbaud americano dos subúrbios do século XX, ora alguém buscando a purificação de um mundo que considera obsoleto e sufocante e cujo método para obtenção desta, é no mínimo original: através da prática dos mais esquisitos pecados, tal qual um personagem saído direto de uma daquelas novelas maravilhosas de Oscar Wilde. Ou então, um sujeito ostentando a decadência com a mais solene pompa, tal qual algum personagem saído dos livros de Dostoiévski. Ou ainda, um pensador implacável, com um impassível senso de realidade e desconcertante lucidez. Tudo isso utilizando uma linguagem básica (simples, nunca simplista), sem apelar para literaturices enche-linguiça.
Além dos Stooges, em seu currículo Iggy possui ainda uma carreira solo na qual constam no mínimo dois álbuns essenciais e mais outros que, se não tão importantes, também não devem em qualidade. Aos interessados, aqui vai um guia de por onde começar.
Vamos ao sumo!
TEM QUE TER
Brick by Brick (1990)
Para os tais roqueiros chegados numa concepção mais clássica do estilo, este brilhante álbum se mostrará perfeito para uma iniciação à obra de Iggy: hard rock musculoso e conciso, guitarras robustas destrinchando nos solos e convivendo harmonicamente com os violões na construção da base das canções, letras inteligentes, engraçadas e irônicas, tudo embalado com o subestimado apuro melódico de Iggy nas linhas vocais, recheando cada música com a mais carismática sensibilidade pop.
Iggy Pop é um grande entusiasta do rock em seu estado mais bruto e selvagem, mas passa longe do saudosismo, o que este disco comprova, com cada canção mantendo léguas de distância do bolor e soando pujante e potente. Tudo isso with a little help from friends do quilate de Slash e Duff McKagan (ambos do Guns N’ Roses) e Kate Pierson (do The B-52’s).
American Caesar (1993)
Subsequente a Brick by Brick, este álbum é uma obra-prima que geralmente passa despercebida no vislumbre geral da carreira de Iggy. Todos os elementos que fizeram do trabalho anterior um grande disco aqui se apresentam de maneira ainda mais apurada e madura, além de filtrados por uma atmosfera climática, claustrofóbica, dark. As guitarras estão mais pesadas e desconcertantes. A base que dá a sustentação à estrutura das canções, ainda mais sólida. O discurso, mais contundente e visceral do que nunca, e o barítono cantor sempre entregando performances vocais excelentes.
Lust for Life (1977)
Canalizando a agressividade e energia dos tempos de Stooges para uma perspectiva mais inteligente, clara, diversa e futurista, este disco é unanimidade como o melhor da carreira solo de Iggy na opinião popular e da crítica especializada. A cada canção, o artista vai apresentando crônicas de inusitadas personagens numa versatilidade musical que vai reinventando clichês sonoros de maneira tão arrojada que tudo acaba soando quase inédito. A mão do gênio David Bowie como produtor se faz sentida no frescor orgânico-futurista do álbum, mas a independência de espírito de Iggy prevalece, partindo para cima dos rumos pretendidos com tudo.
New Values (1979)
Já sem a tutela de David Bowie, Iggy lançou este álbum, que completa o projeto de retorno às raízes de rock primário praticado com os Stooges e esboçado no disco anterior, Lust For Life. Mas algo mudou desde aqueles tempos, claro. As composições aqui possuem um maduro senso de objetivo. Iggy não está mais perdido como outrora, agora sabe onde ir e como chegar. Clássico do rock básico e vigoroso.
The Idiot (1977)
Primeiro disco solo de Iggy Pop, e tendo David Bowie como produtor e parceiro de composição. Quando este álbum foi lançado, a opinião da crítica se dividia entre aqueles que reconheciam as suas qualidades e aqueles que se negavam a reconhecê-las, dada a estranheza que provocava o abismo entre o conteúdo do disco e o universo musical habitual de Iggy.
De modo geral, música sintetizada, futurista, densa. E o cantor se esparramando por sobre com um estilo vocal que nada lembrava o berreiro do tempo de Stooges. Aqui, Iggy aparece centrado, canalizando de maneira fluída seus dotes vocais em performances irretocáveis.
Tanto Iggy quanto Bowie mais tarde viriam a reconhecer que este disco foi mais um "laboratório" que o segundo utilizou para se aproximar de seus próprios anseios sonoros, mas isso não importa. O disco é genial e com toda a certeza foi um importante passo no processo de amadurecimento de Iggy, que pôde descobrir em si um sem-fim de possibilidades.
Post-Pop Depression (2016)
Chegou sorrateiramente pegando a todos de surpresa. Quando este projeto em parceria com John Homme e participação de Dean Fertita e Matt Helders foi anunciado, o espanto causado pela notícia só não foi maior que o que tivemos ao ouvir o trabalho pela primeira vez.
Tudo parecia apontar para algo nos moldes punk 1, 2, 3, 4, e o que foi apresentado mais se assemelha às duas primeiras parcerias de Iggy com David Bowie em sua carreira solo. O disco traz Mr. Pop em grande forma como cantor e compositor, além de afiado como letrista. Congrega um novo público para Iggy e se consagra como um dos grandes discos do ano. Clássico moderno.
VALE A PENA
Blah-Blah-Blah (1986)
Avaliar o valor artístico de uma obra em comparação com outras sempre foi fonte de análises injustas, e este é o caso desse disco. Contando novamente com a produção de David Bowie, parceria que já tinha rendido as indiscutíveis obras-primas Lust For Life e The Idiot, este álbum pode até não conter o brilhantismo dos dois primeiros, mas passa muito longe de ser um disco dispensável. São dez canções pop despretensiosas e muito bem construídas. O produtor Bowie soube mexer com a típica produção oitentista sem se queimar e o resultado geral é um disco muito agradável e cheio de bons momentos.
Soldier (1980)
Subsequente a New Values, Soldier mantém o passo furioso, ainda que menos regular que o do antecessor. O fato das guitarras terem sido subtraídas/diminuídas em volume por problemas entre o guitarrista Steve New (da banda Rich Kids) e Iggy certamente diminuiu o impacto das faixas, nas quais agora predominam os teclados e vilões. Além disso, a produção é confusa, graças aos conflitos entre os produtores James Williamson e David Bowie. Mesmo assim, o álbum tem bons momentos, comportando alguns clássicos do repertório do cantor como “Knocking 'Em Down in the City", "Pay It Safe" (única composição em parceria com David Bowie no disco) e "Dog Foot”. Nele figuram participações de gente do quilate de Glen Matlock (baixista original do Sex Pistols), Ivan Kral (Patti Smith Band), Barry Andrews (membro fundador do grupo XTC e do projeto League of Gentlemen junto com Robert Fripp) e Klaus Kruger (respeitado baterista berlinense)
Naughty Little Doggie (1996)
Neste disco, o décimo-quarto de sua carreira, Iggy resolveu dar prosseguimento ao projeto de abordagem de uma sonoridade mais próxima do heavy metal iniciado em Instinct (1988). Riffs musculosos e o clima de diversão em canções sempre competentes tornam esse CD um ótimo trabalho. O “porém” é que a maior parte das letras não é nada especial, algo que compromete se tratando de um letrista do calibre de Iggy.
Skull Ring (2003)
Festejado como um retorno de Iggy a si próprio após um período em baixa com a crítica, musicalmente Skull Ring oferece o que o artista faz de melhor: rock and roll animalesco com sua assinatura originalíssima. O disco também marca a primeira colaboração de Iggy com os Stooges em 30 anos (a última havia sido em Raw Power, de 1973). Participam do álbum também nomes como The Trolls (banda que acompanhou Iggy nos dois álbuns anteriores a este), Green Day, Sum 41 e Peaches.
Após alguns trabalhos se atendo a uma estrutura mais convencional de composição, Iggy Pop ressurgiu neste disco influenciado pelo livro A Possibilidade de Uma Ilha, com um novo fôlego de inventividade explorando nuances musicais próximas ao jazz alatinado pela bossa-nova (inclusive, há uma versão de “Insensatez", de Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, aqui transformada em "How Sensitive") e à música de New Orleans, com uns toques eletrônicos de muito bom gosto. Sua voz, um caso à parte, se esparrama pelas canções no estilo chanteur inglês (cujo equivalente seria Bryan Ferry), permeando as faixas de uma certa melancolia nostálgica por uma opulência hollywoodiana não vivida.
THE STOOGES
TEM QUE TER
Ready to Die (2013)
Enfim tudo clica. Neste maravilhoso trabalho, Iggy Pop soube ajustar a maturidade adquirida em sua carreira solo de maneira a abrilhantar as qualidades que tornam os Stooges, os Stooges. Incrível como tudo se encaixa. O "detalhe" que quase não tinha vez na concepção original da banda, por exemplo, neste trabalho aparece aqui e ali adornando de maneira primorosa. O fôlego é surpreendente. Tudo soa fresco, e em linhas gerais este disco nada deve aos álbuns clássicos.
"Burn" chega arrombando a porta com um daqueles riffs inconfundíveis de James Williamson, cuja marca maior é a sujidade estranhamente costurada a uma sutil clareza melódica, para depois dar lugar a "Sex and Money" com suas guitarras potentes, backing vocals femininas de muito bom gosto aqui e ali e seus metais que não ficariam fora do lugar em qualquer álbum clássico do selo Stax. O riff de "Job" lembra o da clássica "TV Eye", mas a música se sai competente, principalmente devido à maravilhosa linha vocal do cantor. Linhas vocais maravilhosas é o que não faltam aqui, e são a característica-mor da ótima "Gun" e da linda "Unfriendly World”, com seus violões e atavios de slide, sendo um momento de beleza pungente que você nunca esperaria ouvir do grupo.
Se a faixa título traz de volta as guitarras para o jogo, "Dd's" escancara a influência soul esboçada nos metais da segunda faixa (o andamento, inclusive, lembra muito "I Can't Turn You Loose" sucesso de Otis Redding, composto por ele em 1965). "Dirty Deal" coloca o rock em campo novamente, enquanto "Beat That Guy" e "The Departed" fecham o álbum explorando territórios mais próximos ao folk-rock. Produzido por James Williamson, este foi o último álbum do grupo e seu grande epitáfio.
Fun House (1970)
Um ano após sua estreia em disco, os Stooges surgiram novamente com uma surpreendente maturidade e ainda mais poder de devastação. Contando com o produtor Don Gallucci (músico de estúdio com larga experiência que logo se entendeu com a banda, dado o fato de ter tocado órgão em “Louie Louie”, lendário clássico dos Kingsmen), o grupo aparece com uma performance ainda mais entrosada, pegando fogo desde o início com "Down in the Street" e seguindo o ritmo frenético pelos clássicos "Loose", "TV Eye", “Dirty" e "1970 (I Feel Alright)”, para descambar na barafunda caótica da faixa-título e, principalmente, de "L.A. Blues”. Gravado quase que completamente ao vivo, este certamente é o melhor demonstração do poder de fogo dos Stooges.
Raw Power (1973)
Existe algo sobre esse álbum que não se pode colocar em palavras. Um sentimento permeado, uma magia em cada acorde, aquele estado de súbita compreensão de algo sobre o que não se havia sequer pensado antes de forma objetiva, mas que sempre esteve lá e você sabe disso.
“I'm a world's forgotten boy
The one who's searching, searching to destroy”
Está tudo aqui. Tudo o que não pertence ao campo da ideia articulada, sintetizado da forma mais perfeita. Acrescidos de James Williansom (que Johnny Marr descreveu de forma certeira como “um guitarrista com a técnica do Jimmy Page e o bom humor do Keith Richards”) e com a mão de David Bowie como produtor (esse álbum também recebeu uma mix mais “crua”, feita pelo próprio Iggy), Raw Power, creditado a Iggy and The Stooges, é o mais impactante e bem acabado trabalho do grupo (que já não contava com Dave Alexander no baixo pelo fato de o mesmo estar enfrentando o seu inferno pessoal com o alcoolismo. Ron Asheton teve de assumir o instrumento, mesmo que à contragosto). Cada uma das canções aqui apresentadas compõe um violento e petulante manifesto de rompimento com a obsolescência, usando das cinzas do velho para erguer o novo.
Na altura de seu lançamento, este disco obteve alguma repercussão positiva (coisa que os dois anteriores não conseguiram). À época, Elton John declarou que “não entendo como alguém feito Iggy não é uma super-estrela”. Tal burburinho poderia ter sido aproveitado pela banda, mas esta já estava esgotada demais pela insanidade coletiva para pensar em qualquer coisa referente ao seu crescimento.
The Stooges (1969)
Álbum de estreia do grupo, precede todo o espírito do levante punk de 1977. Conhecido à época como Iggy Stooge, o cantor brada seu manifesto furioso e entediado em canções que se tornaram objeto de culto e cartilha para cada punk rocker que via em Iggy a personificação de tudo o que sentiam, antes de que eles mesmos pudessem o expressar. Produzido por John Cale (sim, ele mesmo!), o disco traz poderosos clássicos como “1969”, “No Fun” e a apoteótica “I Wanna Be Your Dog”.
VALE A PENA
The Weirdness (2007)
Produzido por Steve Albini (Nirvana, Pixies, PJ Harvey), The Weirdness, o quarto álbum de estúdio dos Stooges e primeiro disco de inéditas desde Raw Power (1973), é rápido, cortante, desdenhoso e escaninho. É puramente Stooges. Com Mike Watt do Minutemen no baixo (Dave Alexander, o baixista da formação original - e que não tinha participado do trabalho de 1973 por problemas com o álcool - havia falecido ainda em 1975) e o saxofonista Steve Mackay (que já havia trabalhado com o grupo em Fun House, de 1970), a banda lançou um punhado de canções concisas e competentes, que cumprem bem o esperado. Ron Asheton desfia seu desfile de riffs devastadores e primais. Iggy se ajeita com a cínica naturalidade de um filho que retorna ao lar depois de longo período e age como se simplesmente tivesse dado um curto passeio. Em suma, tudo em casa, tudo certo. Esse seria o último álbum a contar com Ron Asheton, guitarrista da formação original, que faleceria em janeiro de 2009.
Metallic K.O. (1976)
A mais plena expressão da demência. Registrando intervalos entre outubro de 1973 e fevereiro de 1974, este seminal álbum ao vivo é essencial para que se entenda o nível da loucura que tornou as apresentações dos Stooges tão lendárias.
Bônus: Kill City com James Williamson (1977)
Gravado em 1975, o ano no qual a degradação de Iggy atingiu seu ápice, Kill City é um ótimo álbum. Já há tempos Iggy vinha tentando montar algum projeto sonoro com James Williamson, guitarrista da ultima encarnação dos Stooges. Naquela altura, o cantor estava internado numa clínica psiquiátrica e a deixou para fazer os vocais, que impressionantemente são, no geral, muito bons, tendo em conta o estado no qual no encontrava. Finalizado o disco, nenhuma gravadora quis bancá-lo. Assim, acabou sendo engavetado e lançado apenas dois anos depois. Muitas das canções aqui apresentadas se tornaram favoritas dos fãs, como a faixa título, "Sell Your Love", "Beyond the Law", “Johanna” e “I Got Nothing”.
Por Artur Barros
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