Highway, a subestimada obra-prima do Free


Não raro ocorre de o trabalho desenvolvido por um artista ou grupo ter sido tantas vezes diluído e imitado, que a originalidade e influência do mesmo passem a ser menos óbvias aos olhos do grande público. É o caso do Free, uma das mais consistentes e carismáticas bandas da história do rock, pioneira e peça fundamental no desenvolvimento da abordagem agressiva do estilo que se convencionou chamar hard rock, e que viria a culminar no heavy metal.

O Free era, antes de tudo, uma convergência de talentos. Cada membro entrava no painel geral da banda e se encaixava quase que com a precisão de uma peça num quebra-cabeça. Havia Paul Rodgers, soberbo cantor, cuja original voz se equilibrava de forma sensível entre o aveludado e o áspero num estilo impregnado da mais nobre linhagem sou l- e ora, como poderia ser diferente? A principal influência confessa do homem era o Otis Redding! 

Havia Andy Fraser, originalíssimo e eternamente subestimado baixista. Músico preciso e ousado, que ao lado do vocalista, formava o principal núcleo criativo da banda.

Havia também o Paul Kossoff, um guitarrista que não acho outro meio para definir senão iluminado. Quaisquer outros termos mundanos não conseguiriam defini-lo com justiça. Prodígio que já na flor da adolescência dominava o estilo erudito do violão, viu todo o seu viés musical clássico perder o sentido ao se apaixonar pela simplicidade vigorosamente selvagem do blues, que conheceu ao assistir um show dos Bluebreakers do John Mayall com Eric Clapton. Depois, viria a fascinar-se com Jimi Hendrix, que se tornaria seu ídolo máximo e que viu pela primeira vez, quando este, em companhia de Chas Chandler (baixista do The Animals, empresário de Hendrix à época) entrou na loja de guitarras onde Kossoff trabalhava, e não encontrando uma guitarra para canhotos, simplesmente virou o instrumento de cabeça para baixo e tocou divinamente algo no estilo de "Little Wing", deixando o jovem completamente atônito.

Paul Kossoff, com toda a certeza, não é tão cultuado quanto merece, certamente por ter aderido ao nobre caminho do "cada nota em seu devido lugar". Onde a maioria dos músicos escolheria uma banal velocidade enche-linguiça, Kossoff, seguindo as lições ministradas por mestres como T-Bone Walker, B.B. King e Freddie King (este último, o mais subestimado dos "King" do blues elétrico), optava pelo bom gosto e honestidade, fazendo uso primoroso dos espaços de silêncio para tecer com perfeição sua construção sonora, tecida a vibratos e fraseados selvagemente frementes em seu visceral feeling e imponente punch, deixando um legado que viria alimentar nomes díspares que vão de Dave Murray até Joe Bonamassa.

E havia o selvagem baterista Simon Kirke, dono de um way of playing tão certeiro quanto robusto. Juntos, as características individuais confluíam num todo muito maior, onde apenas as qualidades sobressaíam.


Fundado na segunda metade da década de 1960 e permanecendo em atividade até 1973, o Free estreou em disco no mês de novembro de 1968 com Tons of Sobs, uma obra-prima do blues rock britânico, trabalho onde a musicalidade feroz e áspera casava de forma espantosamente harmônica com a mais cristalina sensibilidade melódica. Nos álbuns subsequentes, o refinamento gradual das habilidades pop do grupo vinha se tornando cada vez mais notável, resultando em pérolas quase despercebidas como "Woman" e "Trouble on Double Time", ambas do auto-intitulado segundo álbum de estúdio (lançado em 1969), e culminando no hit "All Right Now" de Fire and Water (1970), seu terceiro, mais conhecido e, provavelmente, mais bem acabado trabalho. Em seu quarto disco, produzido pela própria banda, as suas habilidades como artesãos pop encontravam-se em seu ponto mais elevado.

O ano era 1970, o auge comercial do grupo com o grande sucesso do single "All Right Now". Graças a tal sucesso, a banda foi convidada para integrar a grade do mítico Festival da Ilha de Wight naquele ano. Com o reconhecimento público, vieram as pressões mercadológicas por um novo single de sucesso, a exaustão da estrada e o ônus da fama, que contribuíram para o agravamento da depressão de Kossoff- uma constante em sua vida e que o impelia ao uso cada vez mais desregrado de drogas pesadas. Tudo piorou ainda mais com a morte de Jimi Hendrix em setembro de 1970. Sendo Hendrix o maior herói do guitarrista, a sua morte o abalou profundamente.

Além dos problemas de Kossoff, havia o desgaste da relação de trabalho entre Paul Rodgers e Andy Fraser. Paul, agora casado e com filhos, era o mais preocupado com a estabilidade financeira do grupo e queria conduzir a composição para uma direção "mais Led Zeppelin" (um dos grupos de maior sucesso comercial à época). Andy, que acreditava que o quarteto capitaneado por Jimmy Page imitava a sonoridade pesada do qual sua banda havia sido precursora, achou a ideia um absurdo e, em razão de tais discordâncias, a magia da parceria da dupla foi se desvanecendo paulatinamente. 



Quando lançado em setembro de 1971, Highway resultou num grande desapontamento, tendo atingido apenas a posição 41 nas paradas inglesas e um resultado ainda mais desastrado nos Estados Unidos, onde empacou na posição 190 das paradas de sucesso. Toda essa conjetura malograda serviu para ocultar o valor artístico desse registro, que certamente não é o melhor da carreira da banda, mas que possui um valor único, especial e que urge ser reconhecido.

O play se inicia de forma prazerosa com a altamente agradável "The Highway Song", uma das mais bem acabadas construções pop do grupo. A faixa seguinte, "The Stealer", é uma das grandes canções dos ingleses e contém um dos melhores riffs de Paul Kossoff. O clima segue aprazível com a amena "On My Way" e se transfigura tocante na pungente "Be My Friend", com outra das melhores performances de Kossoff. Certamente é nesse disco que Koss vive seu momento máximo como instrumentista. Permeando cada faixa da mais sublime sensibilidade e ataviando tudo com o mais delicado esmero.

A arrepiante "Sunny Day" dá prosseguimento, seguida pela leve e descompromissada "Ride on a Pony", rematando na bela "Love You So" onde entrelaçados, guitarra, piano e sutis cordas orquestrais arranjam a cama na qual Rodgers se deita entregando uma de suas mais arrebatadoras performances numa das mais comoventes canções do grupo. "Bodie" com seus delicados violões ornamentados de harmoniosas intervenções de slide guitar, é outro momento de sensível beleza.

É interessante notar a explícita influência da sonoridade imposta pela The Band em seu mítico álbum Music From Big Pink (1968), obra que, tendo sido lançada durante o boom do colorido vertiginoso do psicodelismo hippie, ia na total contramão do cenário musical dominante na época, ao propor que para seguir em frente uma volta às raízes se fazia necessário, conquistando com isso o respeito imediato de gente como o Eric Clapton (que já chegou a afirmar que, quando ouviu o disco, pensou na banda como uma das únicas que estavam fazendo algo realmente certo na época), os rapazes do Humble Pie e George Harrison (que chegou a passar alguns dias junto a Bob Dylan e ao grupo na Big Pink).

O conjunto da obra é bem cativante e encanta notar que, apesar do rompimento iminente, este é o disco no qual o grupo melhor trabalha como unidade, com tudo se encaixando, sem pontas soltas. Ouça e comprove.

Por Artur Barros

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