Certa vez sonhei com a morte. Não era o Grim Reaper vestindo uma capa negra e segurando uma enorme foice reluzente, determinado a me levar deste mundo de uma vez por todas, mas sim uma senhora de cabelos brancos e olhos tristes. Eu estava em um quarto de hospital, mergulhado na luz fria de lâmpadas fluorescentes, olhando por uma janela que mostrava um mundo distante e sem cor e ouvindo os bipes ritmados de aparelhos médicos, como se fossem uma canção, a canção que me mantinha preso à vida. A senhora de cabelos brancos e olhos tristes me olhava com pesar, dizendo sem mexer os lábios que não queria me levar, que o seu coração era despedaçado a cada batida, que o peso de sua tarefa era pesado demais. A morte me disse para lutar, para viver.
Eu não sei se Daniel Gildenlöw viu a morte nos olhos quando passou pelo inferno de ser atingido por uma bactéria comedora de carne que quase o matou. Mas o que eu sei é que o simples conceito de encarar a morte tão de perto, mesmo que apenas em um sonho, é o suficiente para perturbar uma pessoa, mexer com suas percepções, anseios e angústias. O que dirá então enfrentar isso tão de perto.
Por mais que Daniel componha, escreva ou fale sobre o episódio, nós nunca saberemos completamente o que se passava em sua mente, a forma como ele sobreviveu e se transformou após a dolorosa e desesperado experiência. É pessoal demais, talvez intraduzível em sua mais profunda magnitude. In the Passing Light of Day é um trabalho poderoso, onde Daniel exprime da melhor forma possível seu próprio encontro com a quase morte em um quarto de hospital sueco.
Não se apegando exclusivamente a velhas fórmulas do passado, o disco transcorre como uma tempestuosa jornada através de uma mente conturbada e perturbada, repleta de medo e desespero. Uma enxurrada de emoções transpostas em arranjos ora complexos e irascíveis, ora singelamente simples e tocantes. Quem sabe uma viagem sinuosa e sufocante pelos cinco estágios do luto.
Temos momentos mais intensos de rock/metal progressivo, remetendo às origens da banda nos longínquos anos 1990, como "On a Tuesday", "Tongue of God" e "Full Throttle Tribe”, onde esbanjam técnica e feeling em arranjos e melodias complexas, além de sombrias e cheias de tensão. Um deleite para qualquer fã mais veterano do bom e velho prog metal.
Existe também um lado que grita e transpira um senso de urgência e medo que se manifesta de diferentes maneiras. "Silent Gold" é uma balada de piano, mais simples e direta impossível, mas absurdamente carregada de sentimento e o desejo por conforto e segurança em meio à tempestade. "Meaningless" é angústia, tensão sexual, sobre o terror existencial de se sentir não sendo mais dono de si mesmo. Para mim já é um clássico da banda.
"Reasons" é experimental, com um toque avant-garde com o qual já flertaram no passado. Me faz pensar em Be (2004). "Angels of Broken Things" e "If This is the End" apostam em construções lentas que levam a clímaces grandiosos e intricados, cheios de força e personalidade. Já "The Taming of a Beast" é a faixa mais “diferente” do disco, algo que remete ao rock clássico, talvez uma sutilíssima pitada de country. Energética, cheia de tesão, com fome de vida e de viver, o encontro com a sua besta pessoal, às vezes intangível, outras vezes sua força motriz mais primordial. Espero que toquem nos shows, haveria de ser fantástico.
A faixa que dá título ao disco é quase um disco dentro de si mesmo, ou um curta metragem em sépia cheio de memórias, remorsos, arrependimentos, mas também alegrias, júbilos, sorrisos e amor. Apesar dos seus quinze minutos, não é a música mais diversa e complexa do álbum, é bastante simples e intimista em sua maior parte, pontuada por ápices vigorosos que não chegam a explodir para valer. Uma reflexão linda sobre o fim, sobre as coisas não ditas e não feitas, sobre os momentos do passado que nos irritaram e agora parecem tão distantes e tão sem significado. Lindo, simplesmente lindo. Analisando como um todo, acho que posso dizer ser uma das coisas mais profundas e tocantes que já ouvi na minha vida.
In the Passing Light of Day é uma obra absolutamente honesta e visceral, flutuando com destreza entre todos os territórios por onde o Pain of Salvation já se aventurou. Tem o prog hermético e técnico de Entropia (1997), One Hour by the Concrete Lake (1998), The Perfect Element I (2000) e Remedy Lane (2002), assim como as ousadias conceituais de Be (2004) e Scarsick (2007), e por fim toda a pegada mais humana, psicológica e sexualmente densa de Road Salt I (2010) e II (2011). Tudo aí, em maior ou menos proporção, formando uma obra que a partir disso tem sua própria identidade, influências e coerência. Já é um dos mais fortes candidatos a ser o melhor disco do ano, mesmo ainda sendo apenas janeiro.
Daniel Gildenlöw pode ser uma pessoa difícil, de personalidade incrivelmente forte (talvez o motivo que faça dele o único remanescente da formação original da banda), mas é sem dúvida nenhuma um gênio, uma dessas pessoas iluminadas que veio parar nessa pedra azulada perdida no meio do universo para causar um impacto imenso na vida das pessoas. Um artista como poucos conseguem ser.
Obrigado por ainda estar conosco, Daniel.
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