Será possível recapitular a história do rock apenas com riffs de guitarra? Huuummmm ... talvez sim, talvez não. Mas, se tivermos de pinçar uma dezena destes, entre itens cult e grandes sucessos, o de "You Really Got Me" certamente não ficará de fora. A canção saiu num single em agosto de 1964 e, a seguir, no primeiro álbum dos Kinks. E levou Ray Davies (voz, guitarra), seu irmão Dave (guitarra), Peter Quaife (baixo) e Mick Avory (bateria) - todos de Muswell Hill, norte de Londres - ao topo da concorrida cena beat.
Até então, eles e os Animals, Yardbirds, Zombies e afins formavam um bloco amorfo, cujo repertório era composto basicamente por covers (hits do rock and roll, standards do blues, novidades soul). Foi quando passaram a privilegiar material próprio que as diferenças apareceram.
Os Kinks largaram mal. Um pastiche de "Long Tall Sally" e, logo após, "You Do Something to Me", debut de Ray como autor, que vendeu estrondosas ... 127 cópias! Na terceira tentativa, porém, chegaram lá: "You Really Got Me" faturou o primeiro lugar nas paradas. Dois minutos e onze segundos de peso, vocais com sotaque cockney, mágica sequência de posições - sol, fá, si - e um solo fuzz absolutamente desvairado de Dave (ou Jimmy Page, segundo a lenda, embora seu take realmente tivesse sido limado na hora H) garantiram imortalidade ao grupo. Sua influência reverbera até hoje, e foi a base (junto a "Rumble", do subestimado Link Wray) para o advento do heavy metal.
Difamadores insinuam que todas as canções que Ray fez depois de "You Really Got Me" são variações do tema. O que, se levarmos em conta várias faixas do LP em questão ("Revenge", especialmente), não é algo fácil de rebater. Por outro lado, tal "limitação" talvez tenha sido o maior mérito dos Kinks. De outra forma, como instrumentistas tão precários tecnicamente poderiam ter gerado músicas tão geniais? A fileira de hits - "All Day and All of the Night", "Tired of Waiting For You", "You Set Me Free" - cravada no Top 10 britânico confirma a primazia do chunka-chunka antropozóico dos Kinks. Um modelo perseguido pelo Who (em "I Can't Explain"), Doors (o que é "Hello I Love You" senão uma reverência aos Kinks?), Velvet Underground (vide o épico de dois acordes "Sister Ray"), punks e epígonos de Madchester.
Mas The Kinks não é só "You Really Got Me". Produzido por Shel Talmy para o selo Pye, o LP bate de longe - exceto The Rolling Stones - todas as estreias de 1964. De início há "Stop Your Sobbing", primeira de uma série de memoráveis baladas de Ray Davies. Também seu notório senso de humor e algumas fantasias libidinosas surgiam em "I Took My Baby Home". Os Beatles ainda estavam naquela de "I Want to Hold Your Hand", mas o maroto Ray não só invertia papeis como terminava "objeto sexual" nas mãos de uma gatinha fálica.
Como era de praxe na época, o disco tem muitos covers, mas o abandono com que os Kinks se atiram aos temas de Chuck Berry ("Beautiful Delilah", "Too Much Monkey Business"), Bo Diddley ("Cadillac"), Don Covay ("Long Tall Shorty") e Slim Harpo ("Got Love If You Want It") fazem a diferença.
Com o passar dos anos, os Kinks vivenciaram diversas guinadas de estilo (cronistas do british way of life em Arthur, a mescla Marx and roll de Preservation Act, a fase de operetas satíricas com Village Green Preservation Society), e ainda mantêm-se ativos com distinção.
Serão relembrados principalmente como prototípicos thrashers, e era assim que se mostravam em The Kinks.
Texto escrito por Arthur G. Couto Duarte e publicado na Bizz #074, de setembro de 1991
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