Review: Amaro Freitas - Sangue Negro (2016)


Rompendo com a toada do lugar comum de tentar traduzir a música popular pelo viés erudito, pianista pernambucano propõe em Sangue Negro, seu disco de estreia, uma inversão de diretrizes, orientando o erudito através do popular

Para se perpetuar, a tradição acaba, repetidas vezes, por assimilar a modernidade, incorporando elementos contemporâneos ao legado histórico da cultura já produzida. O intento é o de promover uma ruptura com os aspectos obsoletos desta, tornando o tradicional coerente e passível de compreensão para as novas gerações. Isto, porém, nunca foi trabalho fácil, ou mesmo frutífero, não importa a esfera, seja na social ou na artística.

Caso icônico é o do desbunde do southern rock nos fins da década de 1960 e início da década de 1970. Um dos mais interessantes fenômenos culturais de sua época, o rock sulista norte-americano surgiu buscando uma interface entre a celebração e o respeito ao tradicional e a assimilação aos avanços progressistas conquistados no âmbito social, lançando fora os ranços do racismo e da homofobia, por exemplo, enquanto que no campo sonoro absorvia, sem preconceito, as inovações musicais vigorosas propostas à época. Nascia então, uma novíssima e exclamativa geração, orgulhosa de sua própria história, mas que mantinha-se crítica quanto aos aspectos vis desta. Uma geração que cultuava o que de glorioso havia em seu passado, enquanto buscava limar seus contornos infames.

No Brasil, o surgimento da bossa nova, o samba "maculado" pelo jazz nos anos 1950 e 1960 e de toda a leva de nordestinos malucos que durante a década de 1970 resgataram a magia e o mistério da música, poesia, estética e folclore nativos, ligando-os diretamente e bem alto no amplificador e filtrando-os no vigor viril do rock, são também modelos mais que notáveis e bem-sucedidos do duro empreendimento que é levar o passado de volta ao futuro.

Tempo presente. Apesar de ser nordestino, meu interesse pela música regional de minha região natal floresceu apenas tardiamente e de maneira quase casual. Explico. Ganhando de surpresa a tarde livre, pus-me a vaguear pelo meu amadíssimo Recife Antigo (bairro da capital pernambucana e principal centro histórico desta). Por ocasião de estar exatamente pelas redondezas da Praça do Arsenal, lembrei-me de um espaço de que muito me haviam falado e cuja localização era precisamente em frente a esta praça: o museu Paço do Frevo, que como o nome dá a indicar, é dedicado à preservação e difusão deste importantíssimo monumento cultural. Fui conhecer o espaço e através de seu rico acervo audiovisual, musical e literário, adquiri um vislumbre muitíssimo mais amplo não apenas no tocante ao frevo, como também a tudo que está relacionado a manifestações culturais populares, música regional e expressões artísticas nativas.

Tive ainda o prazer de naquela tarde da graça assistir a deliciosos números instrumentais de compositores históricos - que vergonhosamente me eram desconhecidos - executados magistralmente por uma galera jovem, cheia de fogo e vontade. Entre estes tais temas instrumentais, dança. As anfitriãs da festa não poderiam ser melhores para a ocasião: a bela saxofonista Mai Taguchi (uma jovem japonesa que após estudar durante um ano o nosso idioma em seu país de origem, veio para Pernambuco conhecer o frevo in loco) e outra flor do Paço - flor de graciosidade e de nome, a beldade pernambucana Maria Flor.

Enquanto a primeira arriscou uns passos numa divertida performance - após apenas 4 horas de aula! -, a divina Flor recifense, que além de grande dançarina é uma talentosa cantora, nos presenteou com uma atuação que deslumbrava por sua intensa carga dramática, cênica e expressionista. Um deleite. Tornei-me frequentador costumaz do ambiente - conforme o tempo me permitia, é claro -, e além de encontrar nas instalações do museu o material de pesquisa necessário para prestar reverência aos mestres, pude também entrar em contato com a música de toda uma turma jovem que mantém a chama da música regional acesa e pulsando frêmita e latentemente através da chamada Hora do Frevo (programa no qual o museu abre espaço para a música instrumental e que ocorre nas sextas-feiras ao meio dia).


Aqui tive o prazer de assistir shows impressionantes de gente incrível como o flautista Fabinho Costa, o sanguíneo e carismático sanfoneiro Johnanthan Malaquias, o vigoroso e preciosista bandolinista Rafael Marques ... e o Amaro Freitas Trio (Amaro Freitas no piano, Jean Elton no baixo acústico e Hugo Medeiros na bateria) no apoteótico show de pré-lançamento do álbum enfocado nesta resenha. De fato, a tal ponto fiquei impressionado com a apresentação dos rapazes, que cheguei inclusive a escrever uma resenha sobre a mesma.

Isso ocorreu em julho do ano passado. Desde então, passaram-se meses, o disco foi lançado, angariando de imediato merecidíssimas avaliações elogiosas dos veículos especializados em cultura, além de lograr premiações como o MIMO de música instrumental em 2016. O trio apresentou-se também no Vivo Open Air - que inclusive contou com Pepeu Gomes em sua grade de atrações.

Chegada, finalmente, minha hora de avaliar este trabalho, sinto-me obrigado a começar com um breve olhar sobre a persona musical de Amaro Freitas, que é sem dúvida alguma, um dos expoentes da nova safra de grandes talentos da música brasileira. Amaro conecta dimensões. Músico de formação erudita (estudou piano no Conservatório Pernambucano), o olindense é dotado de sanguínea verve musical essencialmente tribal, sendo também possuidor de raro senso melódico. Como poderia haver convergência entre dimensões tão disparatadas mostra-se um assunto capaz de render muita deliberação.

Uma questão desafiadora. A tal verve musical essencialmente tribal é nobre herança africana da qual muitos usufruíram, porém poucos souberam fazer uso. Acontece que é energia pura, rústica, vibrante, selvagem mesmo, sendo portanto difícil de canalizar. Dentre os que obtiveram sucesso nisto, basta mencionar James Brown, Jorge Ben, Miles Davis e Herbie Hancock para que se possa ter uma ideia do imbróglio. Em intersecção com estes, Amaro possui o centralizador do método, da organização racional e teórica e conhecimento intelectual, como também o talento de conseguir pesar os dois de maneira que este não aja como um agente pasteurizador em relação ao outro, minando sua intrínseca chama latente. 


O senso melódico, que advém do ideal disciplinado em busca da perfeição estética da canção, é um outro elemento que ocorre num sentido instintivo, mas que devido às circunstâncias que necessita para existir, nem sempre anda junto com o ímpeto do tribal. Uma vez que tudo clica na persona do músico, temos diante de nós um espécime tão raro quanto excêntrico.

Sorte que soube aproveitar seus talentos optando pelo nobre caminho dos criadores, não emulando o que já foi produzido (lugar comum no mainstream da música brasileira), mas fazendo uso das referências para engendrar algo novo, fresco. 

O pensamento que por fim nos acompanha durante toda a audição do trabalho é o de que bem no momento em que havíamos achado que a surreal novela da música relevante e com potencial para a eternidade produzida no Brasil tinha terminado, de surpresa, surge Amaro para escrever seu capítulo. E ele não é o único. Há uma revolução sorrateira acontecendo bem debaixo dos nossos narizes, amigos! 

Sangue Negro divide-se basicamente em dois blocos distintos. No primeiro destes, o trio atém-se a fornecer novo fôlego a usuais formas sonoras.

A produção exemplar, que ficou a cargo do renomado pianista e arranjador Rafael Vernet - que já trabalhou com gente como Chico Buarque, Hermeto Pascoal, Roberto Menescal e Zé Renato -, chega a flertar com o  minimalismo, tamanha a sua clareza mercurial, e conseguiu a proeza de pôr em evidência de maneira equânime cada um dos componentes da enxuta estrutura: o singular baixo pulsante, a exímia bateria esgueira e o piano exuberante e excêntrico de Amaro.

Tudo isto encontra lugar logo no começo, com a catarse que ocorre em "Encruzilhada", a primeira faixa do trabalho, onde referências, citações e alusões são fragmentadas e remodeladas formando assim ecos que ressoam com familiaridade em torno da desconcertante independência de espírito do trio.

Apesar de familiar, trata-se de um caso curioso: o trio filtra o jazz pelo frevo, sendo que usualmente a maioria persegue a direção oposta, tentando traduzir a música popular através do viés erudito. Aqui há basicamente a apropriação da estrutura jazzística pelo popular, quase um desmembramento da arquitetura sonora erudita com o frevo tomando as rédeas, o que configura um exercício de bem-vinda petulância - o também pernambucano quarteto Arranha Céu é outra proeminência a atuar nesta via sonora, só que há uma diferença fundamental na abordagem: enquanto a apropriação de Amaro é pautada pelo domínio, o Arranha Céu atua num sentido quase humorístico, obtendo um resultado tão irrepreensível quanto o de seu par.

"Norte", a faixa seguinte, mais parece uma reflexão musicada, sendo dona de beleza rara, esteta em sua arquitetura perfeita e de sensível apelo singelo, quase palpável. O rico senso do belo é também a essência de "Subindo o Morro", linda, lindíssima composição que traduz com comovente perfeição uma paisagem familiar a qualquer pernambucano: o passo lento ao subir as ladeiras da poética e vibrante Olinda num dia qualquer ou mais especialmente em um crepúsculo de carnaval, com o mar lá em baixo, que tanta coisa expressa no movimento brando de suas águas formando um relevo que quase lembra uma superfície encarpada. "Subindo o Morro" soa como a melhor canção que Tom Jobim teria composto caso tivesse tido Herbie Hancock como uma de suas influências decisivas.

"Samba de César" vem em seguida, e traça desconcertante ponte entre a sonoridade desenvolvida por artistas de selos independentes de jazz dos anos 1970, como a Black Jazz Records, Nimbus Records e Strata Records, e o samba, no momento que juntamente a "Norte", constitui a fração mais pop do registro.

Respeitando o sábio ditado de que o melhor fica para o final, temos agora o segundo bloco do álbum, que inicia-se com "Estudo 0", que bem pode ser considerado o primeiro ápice antes do clímax final, a derradeira faixa do registro, subsequente a esta e canção que dá nome ao disco, a descomunal "Sangue Negro”.

"Estudo 0", composição do baterista Hugo Medeiros, é um número imponente, elegante, e certamente o momento de apelo mais amplamente universal do trabalho. Deslumbrante, o tema conta com as intervenções de muito bom gosto dos mais que especialíssimos convidados Fabinho Costa (trompete) e Eliudo Souza (Saxofone), encontrando seu remate num decisivo final suspenso.

Temos por fim, a faixa título que é a culminância da persona sonora da músico.
Um singular free-jazz de envolvente atmosfera soturna, como uma noite com lua minguante e céu meio nublado. Desafiadora, a canção ascende à apoteose com os arroubos apoteóticos oriundos da convergência entre um bebop de compasso esquizofrênico e o maracatu. Misteriosa e sugestiva, "Sangue Negro" assim como "Estudo 0", já nasceu clássica, conseguindo uma proeza que eu pessoalmente pensava ser irrealizável: a versão aqui presente consegue ser superior à apoteótica versão apresentada no show de pré-lançamento do álbum, vivamente preservada em minha memória desde aquela memorável tarde. As participações de Fabinho Costa e Eliudo Souza contribuem decisivamente para o engendrar desta epifania sonora, acentuando os climas e enriquecendo as texturas. 

Encerra-se então esta inesquecível transa com um delicioso orgasmo duplo. Só existe um porém que abala a perfeição deste registro, que é a ausência de "Composição Para Gaveta N°5", esplêndido comboio sonoro de autoria de Hugo, apresentado no show de pré-lançamento. Ademais, uma observação válida é de que por mais que este álbum seja impecável, a verdadeira extensão do poderio sonoro do grupo, com todo o seu sangue e suor, só pode ser desfrutado inteiramente numa experiência ao vivo.

Ao término da audição deste incendiário disco, ficamos com a certeza de termos experimentado o fruto de um exercício de quase radicalismo. O fato é que em Sangue Negro Amaro oferece um ponto de vista particular sobre música, que não muita relação possui com o trabalho de seus pares contemporâneos ou mesmo com a obra de mestres reverenciados. Sangue Negro é Amaro Freitas se mostrando ao mundo, e o primeiro passo de um longo caminho que ainda tem à frente.

Encerro enfim esta matéria usando a fração final da resenha que escrevi de seu memorável show (for sentimental reasons, como diria Sam Cooke): o que encanta no final é a consciência de se ter presenciado um artista que, lidando com um mix de gêneros com tradições definidas e consolidadas, as respeita ao passo que não se furta de buscar um caminho novo, um caminho seu.

Amaro Freitas e crew não são apenas músicos talentosos: são agora uma esperança.

Por Artur Barros

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