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Eu ouço Mastodon desde 2015. Já tinha escutado uma coisa ou outra da banda anteriormente e não tinha gostado tanto. Mas, num belo dia, ouvi “The Motherload” e fui conquistado. Virei fã e criei um vínculo especial com as músicas, que me acompanharam em momentos felizes e ajudaram a lidar com situações ruins.
Portanto, estava bastante ansioso com o lançamento do novo CD do grupo. O que já sabia é que a obra abordaria a relação dos músicos com o câncer, que, infelizmente, acabou vitimando a mãe do guitarrista Bill Kelliher, além de ter afetado membros das famílias de outros integrantes.
Para tanto, montou-se uma história na qual um personagem que vaga por um deserto é sentenciado a morte por um sultão. Foi assim que nasceu Emperor of Sand, sétimo álbum de estúdio do Mastodon.
Para entender melhor toda essa história, segue uma análise faixa a faixa de todas as músicas do disco.
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Sultan’s Curse
O CD começa dando a perspectiva do personagem que se encontra vagando pelo deserto, “cansado e perdido”. Eis que uma notícia toma o indivíduo de surpresa, gerando apreensão. Trata-se de uma provável menção à “maldição do sultão”, título da música.
A partir daí, o protagonista vislumbra o fim da própria vida, como quando diz-se que “memórias de pessoas amadas passam pela mente”, situação comum em experiências que aproximam da morte. Além disso, transmite-se uma sensação de impotência ante um destino do qual não se pode fugir (“seus pés foram amarrados”, “você está de joelhos”).
Do ponto de vista sonoro, a faixa de abertura é uma pedrada. Riff pesado e uma pegada sludge, bem próxima de algumas canções de Crack the Skye, quarto álbum do quarteto.
Show Yourself
Em uma reviravolta em relação à primeira música, “Show Yourself” se revela uma canção bem mais leve. A levada não chega a ser suave mas não há aquela tensão que marca a faixa anterior. Típica música para tocar na rádio, e isso não é demérito.
Passado o choque trazido pela fatídica notícia, o personagem parece juntar os cacos e, entendendo a inevitabilidade do que está por vir, decide “se mostrar”, revelar quem realmente é. Sabendo que “não está seguro” - e quem está, na vida? - afirma-se que só o indivíduo pode salvar a si próprio. Interpreto essa “salvação” não como uma fuga literal da morte, mas como a vivência de momentos que façam a existência valer a pena, o que “salvaria” sua alma. Essa é uma tendência que irá se repetir logo a seguir.
Destaque para os vocais da dupla Brann Dailor e Troy Sanders, o que evidencia um maior cuidado e a evolução do aspecto cantado no som mastodônico. Os integrantes confirmaram recentemente que, para esse trabalho, se prepararam para elevar o próprio nível como cantores, o que, segundo eles, nunca fora o foco da banda. Deu certo, o upgrade é nítido.
Precious Stones
Seguindo a tendência de sua antecessora, “Precious Stones” reforça a urgência em viver de alguém sentenciado à morte. Até por isso o ritmo acelerado que marca a canção. Os versos “não perca seu tempo/não deixe que ele fuja de você” são bem literais nesse sentido.
Além disso, a referência às pedras preciosas no título e no corpo da música podem ser interpretadas como o valor atribuído a esse tempo de vida, cada vez mais escasso.
Steambreather
Logo de cara, um elemento que faz o Mastodon ser uma banda tão única: é feita menção às linhas de Nazca, localizadas no atual Peru. É a primeira menção a cultura latino-americana, que será abordada novamente mais à frente.
Na estrofe de abertura, o personagem demonstra que ainda mantém a esperança de escapar da sentença de morte, usando a chuva como elemento que “traria vida”, em contraposição ao deserto que o cerca. Nota: acredita-se que as figuras das linhas de Nazca poderiam ter como significado rituais praticados pelos povos nativos para evocar a chuva.
O refrão reforça que o personagem continua perdido com a nova condição que lhe foi imposta ("Me pergunto onde estou / reflexões nada oferecem").
Do meio para o fim da canção, interpreto que o protagonista passa a enxergar a sua situação em terceira pessoa, fora do próprio corpo (“separação do meu espírito”). Em um primeiro momento, o personagem tenta fugir de tudo, negando o que se passa (“Assistir você desmoronando / me fez querer correr para longe”), para, depois, aceitar as circunstâncias (“deixe as árvores caírem onde for”).
O mais interessante é observar como a banda joga aqui com os estágios do luto, especialmente a negação e a aceitação. Complexo, porém genial.
Roots Remain
A faixa mais forte, liricamente falando, do álbum. Aqui, a história ganha ares épicos, retratando, nos primeiros versos, o início de uma guerra apocalíptica. Vida contra morte.
O refrão é belíssimo: “A beleza se esvai / a morte decai”, “galhos quebram/ raízes continuam”. Tanto a letra como a interpretação de Brann Dailor são transcendentais, sublimes, brilhantes, insira-qualquer-adjetivo-elogioso.
Adiante, em tom de despedida, o personagem coloca sua vida em perspectiva, relembrando suas derrotas, cada vez mais distantes, e suas vitórias, que o acompanharão até o “amargo fim”. Em outro trecho emocionante, manda uma espécie de mensagem a um ente querido, pedindo que se recorde de momentos “sentados ao sol” e de “dança na chuva” para posteriormente afirmar que “o fim é apenas o reconhecimento de uma memória”. Tocante.
Em seguida, uma voz macabra anuncia o “fim”, dando lugar a um solo espetacular de Brent Hinds – o melhor do CD, na minha opinião -, que desemboca em uma linha de piano melancólica e sutil, dando fim à obra-prima.
Clássico instantâneo.
Word to the Wise
A música trata de nutrir esperança (“mergulhando no pensamento positivo”) para depois se deparar com a desilusão (“a sirene soou / eu não ouvi”).
Ao tentar enxergar uma solução para problemas irremediáveis, o personagem “cai em um poço de mentiras”. No contexto da batalha contra o câncer, esse verso pode se referir a uma tentativa de cura que não deu certo.
Retorna-se à relação da chuva com a esperança presente em “Steambreather”. Contudo, para a surpresa do protagonista, que já dava tudo como perdido, subentende-se que a chuva começa a cair.
Mais um refrão marcante na voz de Dailor.
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Ancient Kingdom
Mais uma faixa com ares épicos. Uma espécie de outra face de “Roots Remain”, sendo a primeira marcada pela melancolia e esta pela exaltação de uma vida que não tem fim.
A canção se inicia com o trajeto do personagem para escapar da sentença de morte dada pelo sultão. Volta-se então ao cenário de guerra retratado duas faixas antes. Dessa vez, porém, é feito um paralelo entre a batalha que se desenha do lado de fora com um conflito interno do personagem.
A chuva, que começou a cair na música anterior, agora representa a tristeza pela despedida da vida “terrena” e a revelação de uma nova vida: o início da imortalidade (“Faíscas explodindo pelo ar / viver para sempre / sons eternos nunca morrem / e eu continuarei”).
Excelente performance vocal de Troy Sanders, transmitindo a emoção catártica que a música pede.
Clandestiny
Pedrada do começo ao fim e o refrão mais marcante do CD. Simples assim.
A música mostra o “caminho cego” a ser percorrido pelo protagonista, prestes a adentrar o terreno da pós-vida. Nesse cenário, vozes do “outro lado” tentam acalmar o protagonista, assegurando que, nesse novo mundo, não há doenças e dor.
Porém, o medo faz com que a parte humana do personagem, separada do espírito, peça para que a outra metade abdique dessa nova vida e, consequentemente, salve o “eu” por inteiro.
Dentro do contexto motivador do álbum, pode-se interpretar o conflito narrado pela canção com o esgotamento causado pelo tratamento do câncer, que, em alguns casos, pode levar o paciente a querer desistir em vista de um pretenso descanso.
Andromeda
Na esteira da faixa anterior, essa música continua a reproduzir o conflito interno do protagonista. E se as vozes que o incitam a fazer a passagem sem resistir só querem sugar sua força vital? E se, do lado de lá, não existir nada?
Há, então, uma divagação sobre a mortalidade, com o “tempo” e a “luz” se aproximando do personagem vindo “do passado” e “do futuro”, se encontrando em um presente que representa o fim da vida.
Mas e se, por outro lado, há algo depois? “Não há como entender”.
Participa da música Kevin Sharp, vocalista do Brutal Truth.
Scorpion Breath
A penúltima canção conta com a participação nos vocais de Scott Kelly, do Neurosis, como já é tradição desde Leviathan, segundo álbum do Mastodon.
Trata-se, aqui, da “meia-noite” que antecede o “momento da verdade” para o qual o protagonista se prepara desde o “nascimento”. Mais uma metáfora sobre vida e morte.
O fim, finalmente, chegou.
Jaguar God
Primeiramente, o título diz respeito ao “deus-jaguar” Tezcatlipoca, presente no panteão asteca. Vale lembrar que a mitologia dos povos que habitavam a atual América Latina já fora abordada em “Steambreather”, sendo mais uma vez evocada na faixa de encerramento.
Essa entidade era considerada o deus da morte, sendo representada por um jaguar que carregava em seu peito um espelho fumegante no qual refletia toda a humanidade. Essas referências são necessárias para compreensão do contexto, visto que a divindade é caracterizada no decorrer da música.
Observações histórico-culturais à parte, preciso dizer que nunca fui grande fã do Brent Hinds como cantor. Para mim, ele era “só” o melhor guitarrista da atualidade. Até ouvir os dois primeiros minutos de “Jaguar God”. Neles, Hinds consegue traduzir o sentimento de um “vagabundo” que viveu em seus próprios termos se aproximando do final da vida. A interpretação é de uma sensibilidade absurda.
A sensação, a essa altura, é que a vida do protagonista está por um fio, em seus últimos instantes. É aí que o ritmo acelera, talvez representando um último delírio do personagem. A voz de Brann Dailor passa a descrever o “deus-jaguar”, conforme mencionado acima. Caracteriza-se a morte.
Chega-se então ao trecho cantado por Troy Sanders, em que, no último suspiro, o personagem avista o “trono de doenças”. Mais uma referência ao câncer, a maldição do sultão que lhe tirou a vida. Duas conclusões são possíveis e conciliáveis, tendo em vista toda a narrativa desenvolvida: o protagonista realmente morre e, simultaneamente, continua a viver, tomando conhecimento, ao chegar do outro lado, do que de fato aconteceu para que sua vida terrena tivesse chegado ao fim.
A história é finalizada com um solo espetacular de Hinds, remetendo ao compasso lento do começo da canção. Um final digno para um álbum genial, com um conceito fortíssimo mas, proporcionalmente, tocante.
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Emperor of Sand representa uma explosão criativa, propulsionada por episódios dolorosos, de quatro músicos brilhantes no ápice. Prova de que os obstáculos forjam e que da areia do deserto podem nascer lindas flores. Obra de arte, na real acepção do termo.
A nota que eu dou para o disco? Um belo e merecido 9,5!
Por Luiz Guilherme Ferreira
Que leitura excepcional do álbum!! Parabéns.
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