Derf Backderf é um dos novos talentos do quadrinho independente norte-americano e vem conseguindo cada vez mais espaço com suas histórias, que sempre trazem um grande viés autobiográfico. Ele já publicou três graphic novels: Punk Rock & Trailer Parks (2010), onde explora a cena punk dos Estados Unidos em voga quando ele era um adolescente nos anos 1970; Trashed, de 2015, onde relata a sua experiência como lixeiro, emprego que arrumou aos 19 anos; e My Friend Dahmer, onde conta como foi ser colega de aula e amigo de Jeffrey Dahmer. Esta última está sendo lançada no Brasil pela Darkside Books.
Mas quem foi esse tal de Jeffrey Dahmer? Dahmer é, muito provavelmente, o mais notório serial killer da era moderna. Seus crimes foram descobertos em 1991 e deixaram policiais, investigadores e todo mundo que teve contado com a sua história chocados. Ele matou 17 pessoas, todos homens, entre 1978 e 1991, sendo doze delas nos dois últimos anos antes de ser preso. Além de assassinar suas vítimas, Dahmer praticava necrofolia e canibalismo, e cultivou o hábito de esquartejar os corpos e guardar pedaços em sua casa, para não se sentir sozinho.
A história contada em Meu Amigo Dahmer (288 páginas, formato 16x23, capa dura, tradução de Érico Assis) é um relato pesado de como era crescer nos Estados Unidos nos anos 1970. Com uma família totalmente desestruturada, onde os conflitos entre seu pai e sua mãe era constantes, Dahmer sempre foi deixado de lado. A mãe, com indícios de esquizofrenia, era viciada em remédios controlados e sofria convulsões constantes. O pai, químico, vivia mais no trabalho do que em qualquer outro lugar, muito para se afastar do agressivo ambiente familiar. E Jeffrey, no meio disso tudo, passava totalmente desamparado e despercebido, chegando ao ponto de ser literalmente abandonado pela mãe em sua adolescência após o divórcio dos pais ser consumado.
Na escola, as coisas não eram muito diferentes para Jeffrey Dahmer. Antisocial, quieto e estranho, o garoto passou anos e anos à margem dos colegas, sendo totalmente ignorado pelo ecossistema formado por professores, alunos e funcionários. Só começou a se destacar quando, subitamente, passou a imitar nos corredores e salas os trejeitos do decorador de sua mãe, que tinha paralisia cerebral. As imitações de Dahmer fizeram que outros outsiders do colégio, entre eles o próprio Derf, se aproximassem e passassem a interagir com Jeff.
No meio disso tudo, temos um adolescente sem estrutura e apoio familiar e com nenhuma amizade e relacionamento social descobrindo a sua sexualidade. E ela era, no mínimo, doentia. Jeffrey Dahmer era homossexual e gostava de necrofilia, que é o sexo com pessoas mortas. Seu desejo era o controle total sobre os parceiros, como se essas pessoas não fossem indivíduos, mas sim meros objetos para saciar suas fantasias. Essa característica seria levada ao extremo anos mais tarde, quando, já adulto, Dahmer executou diversos experimentos em suas vítimas, perfurando seus cérebros com furadeira e injetando ácido dentro deles para que se transformassem em zumbis. Sem pais e amigos para conversar e tentar entender o que se passava em sua mente, Dahmer apelou para o consumo excessivo de álcool ainda na adolescência, com o objetivo de soterrar os anseios que sabia serem doentios, mas não conseguia controlar.
A narrativa de Backderf é precisa e mostra a transformação gradativa de Jeffrey Dahmer, de um adolescente sem nenhuma interação social a um personagem amedrontador. Derf possui um traço muito expressivo, com bastante influência de Robert Crumb, e constrói um Dahmer pertubador. O domínio da narrativa gráfica é estupendo, com a criação de planos e sequências absolutamente atordoantes. O início da HQ, por exemplo, acompanha os passos de Dahmer por uma das ruas de sua cidade até ele encontrar um gato morto e levá-lo para dissecação. Em diversos momentos temos quadros que exploram perspectivas criativas e que deixam momentos-chave da trama ainda mais fortes.
Meu Amigo Dahmer foca no período escolar de Dahmer, quanto Derf Backderf conheceu e conviveu com ele, e vai até o primeiro assassinato de Jeffrey, em 1978. Um epílogo particularmente impactante mostra a reação de Derf ao saber dos assassinatos cometidos pelo antigo colega de escola quando eles foram descobertos, em 1991.
Além disso, a belíssima edição da Darkside Books, e que marca a estreia da editora no mercado de quadrinhos, traz aproximadamente 100 páginas de material extra. Nessa parte, os textos de Backderf explicando inúmeros momentos da HQ são uma leitura obrigatória e que ajudam a compreender tudo de uma maneira muito mais profunda. Os extras trazem também a primeira tentativa de Derf em contar a vida de Dahmer, em uma história em quadrinhos publicada nos anos 1990 e que deixa claro o quanto o artista evoluiu em todos os aspectos.
Um ponto a se destacar em Meu Amigo Dahmer é a extensa pesquisa realizada por Derf Backderf para contar a história de Jeffrey Dahmer, com trechos dos depoimentos do serial killer para o FBI, entrevistas com alunos, professores e vizinhos da família, além das suas próprias recordações, compondo um quadro ao mesmo tempo incômodo e fascinante.
Eu leio muitas HQs. Estou sempre com uma história em quadrinhos embaixo do braço. Digo isso para deixar claro que não sou estranho a esse universo, muito pelo contrário. No entanto, Meu Amigo Dahmer é, com absoluta certeza, a melhor HQ que eu li neste ano de 2017. Da narrativa ao texto, passando pelo assunto e pelo traço, tudo funciona e constrói um livro absolutamente incrível e, ao mesmo tempo, pesado pra caramba e perturbador como poucos. Não é uma leitura leve, mas é uma leitura que mexe e faz pensar bastante sobre diversos pontos da vida e do próprio dia a dia.
Um trabalho brilhante de Derf Backderf, que foi premiado em 2014 no Festival de Angoulême, na França, e recebeu em 2017 uma adaptação para o cinema (ainda inédita no Brasil) dirigida por Marc Meyers. E uma estreia excepcional da Darkside Books no mercado de quadrinhos, mostrando que a excelência mostrada em seus livros será aplicada também em suas HQs.
Indispensável!
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