Show: Jethro Tull Performed by Ian Anderson | 9 de outubro de 2017 | Auditório Araújo Vianna | Porto Alegre


Lembro da minha frustração em 2 de agosto de 1988, data do lendário show do Jethro Tull no Gigantinho em Porto Alegre. Na época, Ian Anderson e sua trupe divulgavam Crest of Knave (1987), um dos discos medianos que o Tull lançou naquela década. "Foram os três solos de flauta mais longos que vi num show de uma banda de rock! E o público enlouqueceu", relembra o músico Rafael Ritzel, que nessa noite de 9 de outubro está ao meu lado. De todo o modo, ele ainda se orgulha de ser uma das testemunhas daquele evento histórico na capital gaúcha, época em que o RS estava longe de ser um corredor de passagem para bandas internacionais. 

Voltando a 2017, todos sabemos que rock e o mercado da música pop mudaram, as formas de ouvir música são outras. Álbuns não vendem tanto quanto há 30 anos, e hoje, artistas que construíram sua história nas décadas de 1960/70 não apenas precisam cair na estrada para reaquecer o interesse pelas suas obras. Eles sabem que os tours passaram a ser pilares de conexão, isso tanto com os fãs devotos, como também frente a novos públicos. Digressões também são potentes veículos de divulgação de bandas/artistas, e o mais importante: fonte de renovação para eles próprios.   


21h em ponto: quando vemos Ian Anderson, 70 anos, corpo ainda esguio, coreografando as cenas clássicas que conhecemos das capas do discos/fotos/vídeos de shows antigos, a sensação é de que essa magia estradeira realmente é essencial para muitos artistas. Se aos 29 anos o compositor de "Too Old to Rock and Roll, Too Young to Die” cantava a decadência do rock e questionava o futuro do gênero, 40 anos depois cá está Ian cantando a mesma canção e ainda fazendo o seu trabalho à moda antiga. E muito bem! Instrumentalmente, o líder do Tull continua sendo um artista impressionante. Já a garganta, apesar de ainda guardar o conhecido timbre, perdeu a potência, revelando um vocalista mais cuidadoso. Nada que o desabone sua capacidade de encantar uma audiência. Esse talento permanece intacto. "Com a carreira que o Ian tem, ele pode fazer o que quiser", avisa o brother Ritzel ao pé do ouvido.   

No palco, além de Ian Anderson (flauta, voz e violão), temos dois integrantes que prestam serviços ao Tull a uma década - David Goodier (baixo e voz) e John O'Hara (teclado). Já o músico alemão Florian Opahle (guitarra), com passagem pela banda de Greg Lake, fixou residência no Tull desde 2003. Completa o time Scott Hammond (bateria), desde 2010 no grupo. A apresentação começa com "Living in the Past", seguida de "Nothing is Easy" e "Heavy Horses", temas pinçados a dedo da joia da coroa da obra desenhada desde 1968 por Ian Anderson. Aos primeiros acordes do violão base de "Thick As a Brick", previsivelmente o público efervesce. 

Uma das maiores virtudes da trajetória musical do grupo britânico é justamente o cruzamento da tradicional linha de montagem de uma banda de rock com a música erudita e folclórica europeia. E não estão aí um dos pilares do rock progressivo? E esse é um dos pontos altos da noite, quando instrumentalmente a música do Tull ainda soa assombrosa meio século depois de seu descobrimento. É justamente essa teia sonora que nos deixa impressionados em "Bourée" e "Pastime in Good Company", quando fica fácil associar a figura hiperativa de Ian Anderson com antigas lendas do velho mundo. Iconicamente sua performance também colabora para essa associação, quando a cada movimento e soprada na flauta transversal novas caretas e olhares são lançados a audiência.  


Depois de um breve intervalo de 20 minutos (chance pra colocar o papo em dia com vários amigos presentes), às 22h16 as imagens vampirescas no telão colorem ainda mais "Sweet Dream". Capitaneado pela guitarra de Florian Ophale, essa conversa entre a sonoridade medieval e o rock pesado explicita o modus operandi do Jethro Tull, recurso que ao vivo a torna ainda mais impressionante e translúcida. E há um equilíbrio entre performance e malabarismos musicais, pois tanto as geniais intervenções da flauta de Anderson, quanto os solos de bateria ("Dharma For One") e até mesmo o ápice guitarrístico de Ophale ("Tocatta and Fugue in D Minor") surgem equalizados numa proporção exata, sem excessos. Também é necessário lembrar da raiz blues do Tull, uma memória alinhavada por exemplo na gaita de boca de Ian em "A New Day Yesterday", outro momento especial do set.    

E toda as percepções eclodem rumo ao clímax perfeito: "My God", momento em que a primeira música do lado B de Aqualung faz o preâmbulo e prepara a cama para a faixa título, um dos momentos mais esperados da apresentação. "Quem nunca ouviu Aqualung que atire a primeira pedra!". Quem nunca topou com a capa de um dos mendigos mais célebres do rock? E no bis, "Locomotive Breath" surge como um trem bala rumo ao desconhecido, deslizando para uma fronteira além das nossas expectativas iniciais. 

Em sua oitava passagem pelo país, finalmente o garoto de 1988 ressuscitou no plateia de um show do Jethro Tull. Lá estava ele, bem em frente ao palco, envelhecido, hipnotizado a registrar tudo com seus olhos e ouvidos. Parado como uma estátua barbuda saída diretamente da imagem do LP.

Nossos agradecimentos à Agência Cigana pelo suporte e credenciamento.       


Set 1:
Living in the Past
Nothing Is Easy
Heavy Horses
Thick as a Brick
Banker Bets, Banker Wins
Bourrée in E minor
Farm on the Freeway
Too Old to Rock 'n' Roll, Too Young to Die
Songs From the Wood

Set 2:
Sweet Dream
Pastime With Good Company
Fruits of Frankenfield
Dharma for One
A New Day Yesterday
Toccata and Fugue in D Minor
My God
Aqualung

Bis:
Locomotive Breath



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