Se algo define a bem sucedida trajetória que os Titãs desenharam nestes últimos 36 anos, certamente é a capacidade que o grupo tem de quebrar expectativas e gerar novas demandas criativas. Explico: em idos dos anos 1980, depois do lançamento de Cabeça Dinossauro, os que esperavam ansiosos por um novo assalto punk assistiram à progressiva aventura da banda pelas plagas da new wave. Daí que, depois de Õ Blésq Blom, em fins da mesma década, a expectativa já fosse outra. Especialista em andar na contramão, porém, a banda voltou ao estúdio e produziu Tudo ao Mesmo Tempo Agora, seu disco mais cru, com um rock agressivo, com sonoridade de garagem. Titanomaquia, o primeiro sem Arnaldo Antunes, expandiu a sujeira, o peso e a agressividade do antecessor e conquistou um público cativo que, de forma marginal à crítica hegemônica, acabou transformando o álbum em uma espécie de clássico bastardo da música brasileira.
As reviravoltas titânicas, contudo, não pararam por aí. Na primeira metade da década de 1990, a expectativa em torno da banda girou, evidentemente, na órbita dos elementos que deram sustentação à fase mais barulhenta de sua carreira. À espera de algo na linha de Titanomaquia, os fãs desta fase mais pesada – não sem uma ponta de decepção, é claro – viram a banda puxar o freio e lançar Domingo, disco mais palatável às rádios e, na sequência, tirando de cena as guitarras, emplacarem seu maior sucesso comercial da história, o Acústico MTV. Dali por diante, o apelo estrondoso da roupagem acústica fez o grupo repetir a dose em novo registro de estúdio e, como sequela, moldar a sonoridade dos discos lançados na década de 2000 – embora contassem com uma cara mais rock, e até um e outro som mais agressivo, o clima geral de A Melhor Banda, Nós Estamos Bem e Sacos Plásticos seguiu o padrão radiofônico que se impôs ao som dos Titãs após seu período de onipresença nas FMs, com as bênçãos de muitos hits e trilhas de novela.
O tempo foi passando e, iniciada a década de 2010, poucos ainda esperavam por um álbum dos Titãs que resgatasse o espírito de seu maior clássico, disco que projetou a banda para um novo patamar. Então os paulistas, agora como quarteto, resolveram quebrar as expectativas novamente e, em 2014, lançaram Nheengatu, disco pesado, extremamente crítico ao momento (momento?) do país e que remete, em som e conceito, ao punk rock de Cabeça Dinossauro. E assim chegamos em 2017, ainda sob a ressaca do disco anterior, mas já com os rumores em torno do um novo trabalho.
Doze Flores Amarelas teria um formato ousado, inédito tanto para os Titãs quanto para o rock brasileiro: inspirado em clássicos como Tommy e The Wall, Branco Mello, Sérgio Britto e Tony Belloto – os três remanescentes da formação original – trabalhavam, junto de nomes como Hugo Possolo e Marcelo Rubens Paiva, no argumento de uma ópera rock. Com um universo temático centrado no machismo, discutindo assédio, estupro, vingança, drogas e redes sociais, é certo que a expectativa dos fãs (depois do tão propalado “retorno às origens” com Nheengatu – expressão que, como vimos, faz pouco ou nenhum sentido frente ao comichão criativo característico do grupo) era de um novo petardo punk rock, destes de bater cabeça, urrar feito bicho e lavar a alma da nação. A equação é simples: quem ouviu "Pedofilia" e "Flores Para Ela", canções do disco de 2014, certamente imaginava a mesma agressividade no tratamento dispensado aos temas deste novo trabalho.
A apresentação da banda no Rock in Rio 2017, porém, revelando três inéditas ao público, mostrou algo diferente do esperado. A atmosfera soturna e cadenciada de "Doze Flores Amarelas", canção que batiza o projeto, em tudo estranha ao conjunto da obra titânica e surpreendeu os fãs mais uma vez. "Me Estuprem", com título autoexplicativo, contrastando o peso temático da letra com a suavidade pop rock de seu instrumental, tornou evidente aos desavisados: “Hey, não esqueça, nós somos os Titãs e queremos fazer algo novo em nossa carreira”. Não espere, portanto, a continuação de Nheengatu, mas isso, como veremos, vai bem longe de ser algo ruim.
O projeto da ópera rock dos Titãs carrega certa ousadia até mesmo para os padrões do gênero: antes mesmo da divulgação das canções, a banda estreou seu espetáculo mesclando música e teatro, com projeções eletrônicas, a participação das cantoras/atrizes Corina Sabbas, Cyntia Mendes e Yas Werneck (que também cantam em boa parte das canções de estúdio), além da narração em off gravada pela Rita Lee. Opção arriscada, se bem que instigante: assistir a uma banda de rock tocando 25 composições inéditas dentro de um teatro é experiência incomum, e que pode gerar uma recepção mais exigente do que o padrão. Dito e feito: em pré-estreia realizada no Festival de Teatro de Curitiba, a crítica do jornal local lamentou a ausência de uma “canção para levar pra casa”, de algum refrão chiclete que grudasse à primeira audição, ao que, naquele momento, tive o ímpeto de concordar. Agora, porém, quando os atos já estão disponíveis em plataformas de streaming, ouço melhor o material apresentado, relembrando a execução ao vivo e reavaliando por isso a crítica de primeira hora. Reorientado pelo álbum de estúdio, deixo o espetáculo um pouco de lado e volto às canções de Doze Flores Amarelas, um disco muito acima da média, que respeita e valoriza a trajetória extraordinária da banda sem, felizmente, repetir qualquer outro Titãs.
A narrativa contada pelo disco tem como centro um estupro coletivo. Três jovens – as Marias A, B e C –, orientadas por um aplicativo chamado Facilitador, espécie de oráculo moderno, vão a uma festa que acaba muito mal: as três são violentadas pelos rapazes que planejavam conhecer. Traumatizadas pelo evento, as garotas se afastam umas das outras, sem encontrar qualquer conforto na família ou nos amigos. Uma delas, grávida de seu agressor, encontra no aborto uma alternativa, o que não a livra, contudo, da depressão. Mais uma vez orientadas pelo aplicativo, as Marias decidem se vingar dos garotos mediante um feitiço – o feitiço das doze flores amarelas. Sua magia funciona e um dos rapazes acaba morto. A morte não as consola, mas causa mudanças na vida das personagens. Marcadas por essa experiência traumática, as Marias passam a ver suas vidas sob uma nova ótica, buscando nelas mesmas sua felicidade e alguma paz.
Em linhas gerais, este é o enredo da ópera titânica. Relativamente simples, ele adquire profundidade e complexidade emocional mediante as composições do grupo, que transitam por diversas sonoridades e estilos, do pop rock ao ska, do punk rock à roupagem acústica, do rock setentista à balada indie, passando em revista diversos formatos assumidos pela banda ao longo dos anos, sempre buscando a melhor expressão formal para esta ou aquela nuance narrativa. Desta forma, Doze Flores Amarelas não poderia ser um disco de sonoridade tão coesa quanto seu antecessor, sob o risco de se perderem os detalhes que dão vida à história.
Dividida em três atos, a obra tem na narração de Rita Lee um subterfúgio que, à emergência dos furos narrativos, garante o encadeamento das composições. Abrindo o disco, temos a apresentação das três Marias, que é seguida por "Nada Nos Basta", canção forte que explora os anseios femininos de nosso tempo (tantas vezes frustrados pelas amarras da cultura machista), desejos da juventude atual, mas também pode ser lida como expressão de liberdade criativa e inquietação artística do próprio grupo, que justifica com os versos de Sérgio Brito o próprio projeto da ópera rock: “Hoje eu sou / quem eu sou / hoje eu sou / o que eu sou / amanhã eu sou / quem eu quiser”. Na sequência, em estilo rockabilly e ieieiê, Branco Mello dá o tom em "O Facilitador", canção que nos apresenta o aplicativo, que por sinal é símbolo do projeto. Sem muito brilho, a canção passa a bola para ""Weird Sisters", que entra na roda e nos entrega um pop punk pra americano nenhum botar defeito. Os estrangeirismos, aliás, muito utilizados ao longo de todo o disco, aqui assumem sua expressão mais ousada, em uma canção versada inteiramente em língua inglesa. O recurso funciona bem como elemento de composição da atmosfera dos jovens retratados pela história, imersos na cultura de massa norte-americana, além de remeterem à língua comum da realidade virtual em que as personagens estão inseridas, marcada pela experiência dos aplicativos. "Weird Sisters" chama atenção, ainda, por introduzir a participação das cantoras e atrizes convidadas para o projeto, que cumprem perfeitamente o papel das Marias, tanto no palco como na competente atuação vocal. Fora de campo, porém, a banda peca por não divulgar adequadamente quem canta o quê, em se tratando das cantoras convidadas, nas canções já disponibilizadas – dado que justifica, inclusive, minha displicência ao tratar destas participações.
Na sequência, "Disney Drugs", um dos picos criativos do disco, dá continuidade, desde o seu título, ao uso do inglês nas composições. Servindo como apresentação dos rapazes, a canção realiza, sobretudo, uma crítica às relações familiares esvaziadas que fazem, por vezes, a coexistência de pais e filhos em uma mesma casa assumir a forma de universos paralelos em constante conflito, donde a alternância entre drogas ilícitas e personagens de desenhos animados, todos eles nomeados em língua inglesa, representa bem esta realidade fraturada que muitas famílias se recusam a admitir como sua. Em "A Festa", os arroubos inconsequentes da juventude são explorados de modo irônico, dialogando com a canção anterior: “Mommy, give me some money”, canta Branco Mello no refrão.
Com dois momentos musicais bem distintos, "Fim de Festa" revela o vazio das relações sociais/sexuais de nossa sociedade para, na sequência, focar na abordagem agressiva dos abusadores que, diante das recusas, revelam sua selvageria criminosa. Embora musicalmente a canção empolgue, é dos poucos momentos da ópera em que, descontextualizado, o som perde um pouco do seu sentido. Seus recursos estilísticos, aliás, são dos mais interessantes. Começando como uma balada de “fim de festa”, dessas para os casais dançarem juntos, a canção contrasta sua sonoridade adocicada com uma letra extremamente ácida e até mesmo sombria, que anuncia um engano: “Vocês pensam que é uma festa, mas não é / mas não pensem que é uma missa, pois não é” (...) esta é a lei da selva / ajam como age um animal / ajam como age um animal / ajam como age um animal”. Na sequência, a balada cede lugar a um ska tenso e cheio de energia, quando a voz dos rapazes domina a canção: “Queremos as três santinhas / queremos vocês bem loucas / queremos as três putinhas / queremos vocês”, e segue com refrão explosivo, “Não queremos nem saber / nem pensar, nem dizer / não sei quê, não sei quê”. Sem dramatizar o estupro, a canção termina com uma catarse instrumental em que a sugestão de um solo de bateria (no espetáculo, o solo ocorre de fato) representa – de forma sagaz e adequada, posto que abstrata – a violência sexual.
Consumado o estupro, o primeiro ato termina com a canção "Me Estuprem", balada pop rock que, por sua letra irônica (“Me estuprem / se dei algum motivo”), produz ruídos de significado e um mal estar que destoa de seu instrumental, chamando atenção para o tema proposto e, consequentemente, para a relevância de toda a ópera rock. Com isso, passamos ao segundo ato com a expectativa de conhecermos as consequências da atitude criminosa dos rapazes, o que faz a segunda parte da ópera, é claro, ser musicalmente densa e emocionalmente muito mais carregada.
O segundo ato se inicia com um primeiro interlúdio. Rita Lee, no papel de narradora, nos conta que, depois daquele dia, as três Marias ficaram isoladas, não falavam do que aconteceu com ninguém, nem mesmo entre elas mesmas. Maria A, porém, descobriu que estava grávida. Precisando de ajuda, tentou falar com seu pai, um “bom pastor”. O interlúdio faz a transição para as músicas do segundo ato antecipando a melodia e o clima religioso da canção seguinte, "O Bom Pastor", que embora seja um dos grandes rocks do disco, parece ter entrado na história de forma um pouco frouxa.
Rock de sabor setentista, com excelente arranjo de guitarras e grande atuação vocal de Branco Mello, "O Bom Pastor" faz uma crítica ao oportunismo de certos segmentos do mundo evangélico, com preocupações materiais muito mais evidentes do que aquelas teológicas. Não encontrando ajuda na família, Maria A opta pelo aborto. O clima setentista da canção anterior persiste em "Eu Sou Maria", que explora o julgamento social em torno do aborto. Alternando arranjos de um rock mais clássico, lembrando inclusive o The Who – uma das inspirações para o projeto -, com passagens mais agressivas e pesadas, que expressam o desamparo das mulheres que passam pela experiência retratada. Destaque para a boa letra e para o belo dueto entre Sérgio Britto e os vocais femininos.
A partir daí, temos alguns dos momentos mais agressivos e depressivos do disco. "Canção da Vingança" chama atenção pelos vocais de Tony Belloto, que também rouba a cena em um instrumental exclusivo das guitarras. Mas, se Belloto não faz feio e se garante no papel de vocalista, pode-se dizer, contudo, que faltou uma dose a mais de agressividade em sua voz, tendo em vista o teor forte da letra que entoa. Depois de enumerar seus desejos vingativos, a voz (que é de Tony, mas de Maria) completa: “E quem sabe no final de tudo / com você todo fodido / eu possa enfim te perdoar”. "Hoje", mais um grande momento de Doze Flores Amarelas, é outra das canções mais intensas e perturbadas da ópera rock, versando sobre desejos suicidas em alternância com ímpetos de vida energicamente expressos por seu refrão forte. "Nossa Bela Vida" desdobra o clima de angústia e depressão, desta vez, porém, em roupagem acústica, de flerte explícito com a verve MPB que, sabemos, Sérgio Britto vem revelando em sua carreira solo. A tristeza profunda presente na composição entra em atrito com a beleza pop de sua melodia e, por isso, acaba negativando todos os desejos expressos pela voz ficcional da canção – “Eu só quero fumar meu cigarro”, “Eu só quero fazer o jantar”, “Eu só quero cuidar da família”, desejos que culminam num quase refrão em tudo melancólico: “Eu só quero poder chorar”.
Em "Personal Hater", o ódio que as Marias sentem pelos seus estupradores encontra finalmente o peso de um rock que nos remete aos momentos mais agressivos da história da banda, inclusive do disco anterior. Aqui, mais uma vez, os estrangeirismos de língua inglesa, tornados moeda corrente pelas redes sociais, dão o tom da composição – o refrão repete o título em ritmo frenético. No segundo interlúdio, conhecemos o sentimento de Maria C, que “parecia não querer encarar o que aconteceu”, pois fora abusada por um cara “de quem tanto gostava”. "De Janeiro até Dezembro", canção que dá sequência ao ato, é um punk rock que lembra momentos do disco Domingo, mas também denuncia a influência (declarada pela própria banda) que o grupo sofre dos norte-americanos do Green Day. Com apenas um minuto e meio, a canção termina deixando um gostinho de quero mais. Esta, aliás, é uma característica de todo o disco, que conta com muitas faixas extremamente curtas, de pouco mais de um minuto, compensando a extensão do projeto como um todo, com suas 25 novas composições.
"Mesmo Assim" é qualquer coisa como um oásis em meio ao deserto de sofrimento e ódio do segundo ato. Balada de amor com influência indie, que lembra um som à la The Killers, poderia soar deslocada no conjunto, não fosse a excelência da produção do disco. Extremamente eficiente, ela consegue tirar o melhor de cada canção, dando um conceito próprio para cada faixa e auxiliando no processo de narrar a história. Neste caso, a letra romântica, em que Maria C revela ainda amar o seu agressor (“mesmo assim”), consegue fugir ao risco de banalização da violência com uma produção de sabor oitentista, com efeitos que geram um ar onírico ao seu significado, ou seja, mostrando a própria impossibilidade deste amor, que foi esmagado pela violência criminosa e pela brutalidade dos rapazes. Confirmando o caráter de sonho desta relação amorosa, temos na sequência outro rock de levada punk, desta vez com a voz dos rapazes, que falam pela primeira vez sobre os eventos daquela noite. "Em Não Sei”, há que se destacar mais uma vez a eficiência dos jogos de linguagem em inglês. Em letra centrada na tentativa dos rapazes de se desvincularem dos rumores e acusações - “Elas enlouquecem, agora a culpa é nossa” -, a canção abre com refrão estranhíssimo, que num primeiro momento soa como “não me esquece”, que faz todo sentido no contexto geral da letra, mas que na realidade perverte um bordão feminista sob a ótica dos agressores: “No means yes / yes means anal”. Não é não? Bem, não para eles.
Assim, o segundo ato se encerra com a reação das Marias ao comportamento repulsivo e criminoso de seus agressores, em outra grande canção que mescla momentos de leveza, onde o peso da letra contrasta ironicamente com a suavidade do instrumental e dos vocais femininos, com o peso das guitarras e vocais distorcidos que, em momentos distintos, entoam o mesmo mantra, título da canção: "Essa Gente Tem Que Morrer". Assim, com uma explosão final que repete furiosamente a expressão máxima do desejo de vingança das três Marias, a segunda parte se encerra deixando no ar as providências que as meninas devem tomar no terceiro e último ato, visando purgar da consciência (sem sucesso, é claro) o ódio e a raiva que sentem por seus estupradores, que saíram impunes desta situação – ao que nos perguntamos: será mesmo? E é isto o que, enfim e em breve, o terceiro ato nos dirá.
É Rita Lee quem nos conta, em terceiro e último interlúdio, sobre o plano de vingança das Marias: “Juntas de novo, queríamos enfrentar aqueles cinco filhos da puta”. Auxiliadas novamente pelo aplicativo Facilitador – o que não fica claro nas canções, mas sim no espetáculo –, as meninas acabam concebendo a morte de um dos seus agressores. Sobre este evento misterioso, a consumação da vingança, é que a maior parte das canções do terceiro ato irá repercutir.
Com vigoroso riff de guitarra, "Me Chamem de Veneno" nos devolve à história com uma dose extra de peso e energia renovada. Sugerindo a via encontrada pelo aplicativo para dar fim à vida de um dos estupradores, ela abre caminho para o clímax sombrio da história. Mais grave e soturno do que os anteriores, o terceiro ato de Dozes Flores Amarelas encontra nos arranjos de piano e orquestra um diferencial que, na reta final da narrativa, engrandece o desfecho da ópera e contribui para a sua plena realização – a canção título é, por metonímia, o exemplo mais preciso desta contribuição. Apresentada em show do Rock in Rio, "Doze Flores Amarelas" já era conhecida pelos fãs mais atentos, porém, sua execução ao vivo, com certa crueza garageira que é marca da formação atual dos Titãs, não nos permitia vislumbrar todo o seu potencial. Aqui, em sua versão de estúdio, melhor experimentamos o seu clima denso. Em termos de estrutura lírica e melódica, a canção difere de tudo o que o grupo paulista já fez. Ritmo cadenciado e atmosfera fúnebre, com direito a Sérgio Britto e Branco Mello em dueto de vozes e solo de guitarra de Belloto. É um dos grandes momentos do disco.
Em sequência de contraste irônico, "Ele Morreu" nos toma de assalto com sua levada pop, dançante e descontraída, enquanto aborda a repercussão da morte inesperada (não para nós, é claro) do agressor. A morte do rapaz reverbera ainda em três canções subsequentes. "Pacto de Sangue" é, em todo o disco, o primeiro e único momento em que temos uma canção cantada exclusivamente pelas atrizes convidadas. Sua letra aborda o compromisso de silêncio que as Marias assumem frente aos desdobramentos da vingança, sugerindo, enfim, a gravidade e a culpa que a situação de fato as impõe. Aqui, Corina Sabbas, Cyntia Mendes e Yas Werneck comandam o curso da narrativa, preparando o terreno para a participação decisiva que terão, também, nas canções finais do álbum. Por seu sabor performático e sua presença vocal, a canção é um dos raros momentos em que, deixando de lado a própria banda, encontramos o formato musical em sua potência máxima, tendo a sensação de acompanharmos uma trilha sonora de espetáculo hollywoodiano.
"O Jardineiro", por sua vez, embora estruturalmente dispensável à narrativa, traz à ópera um delicioso slide de guitarra que, com sua levada de surf music, cativa o ouvinte logo à primeira audição. Nela, Branco Mello encarna o coveiro gago que enterrou o defunto da história, esbanjando carisma por sua dicção peculiar: “Eu sósósó sou o coveiro / deste lugar”. A morte será tema, por fim, de outro rock com roupagem mais pesada. Iniciada por um zunido de guitarra, que mais parece ter fugido de algum metal alternativo, "Réquiem" resgata a voz do falecido que, como um Brás Cubas juvenil, sugere que os mortos devem ser esquecidos, em favor dos vivos. Sua letra nos confronta com um dado etário perturbador: pedindo para que o lembrem “saindo da aula”, “andando de skate”, “falando no Face como todo o mundo fala”, a letra nos lembra da juventude das personagens que, vítimas ou culpadas, partilham todas de uma mesma inconsequência adolescente.
Os momentos finais da ópera titânica reforçam as características anteriormente evocadas, com duas grandes melodias que, no plano instrumental, são acompanhadas por belíssimos arranjos de piano e orquestra, além de excelentes atuações das vocalistas convidadas, tanto no que se refere aos backing vocals quanto nas vozes principais. Em sua formação clássica, contando com a presença incomum – em se tratando de uma banda de rock – de cinco vocalistas, o bom uso do backing vocal foi sempre uma das marcas mais evidentes da música dos Titãs. Com tantas baixas, reduzida a sua oferta de vozes, as participações especiais proporcionaram à banda um excelente recurso que, muito bem explorado, é um dos pontos altos do trabalho inteiro.
"É Você" anuncia a transformação interior das Marias, que começam seu percurso de reconstrução identitária resgatando uma autoconfiança perdida diante dos acontecimentos traumáticos por que passaram ao longo da história. Identidade, aliás, é o grande tema que, motivo na canção inicial, retorna através da derradeira "Sei que Seremos". Nesta, as três Marias reassumem o controle sobre suas vidas, delineando um grande final para o projeto que, certamente, ficará marcado na discografia dos Titãs, ocupando nela um lugar especial. Contando com o melhor riff de guitarra de todo o disco, "Sei que Seremos" peca apenas pela sua brevidade: seus pouco mais de dois minutos nos deixam, ao final, com um gostinho de “queria ter um pouco mais disso”, afinal, a canção põe fim a um conjunto expressivo de 25 novas composições, número inédito em toda a história da banda, e por isso bem merecia um seu prolongamento natural.
Fechado o terceiro ato, temos, por fim, melhor visão de conjunto e condições efetivas para exprimir uma visão de panorama. De forma geral, a ampla maioria das canções sobrevive de forma autônoma, embora bem integradas à narrativa. Isto importa na medida em que garante a sobrevivência dos temas para além da experiência do espetáculo, ou da audição integral do álbum. A necessidade de contar uma história, por sua vez, inseriu muitos elementos estranhos à sonoridade titânica, o que, longe de ser algo ruim, expande os limites (já tão elásticos) que a estética da banda possui. Doze Flores Amarelas corresponde, portanto, à expectativa que o grupo promoveu e está promovendo em torno de seu lançamento, assumindo a forma de um grandioso disco de rock, com os elementos todos que são esperados a este formato – versatilidade, relevância, força de composição. Projeto inédito no Brasil, somente este feito já garantiria a presença do álbum nos anais da história do rock brasileiro. Mais do que isso, porém, o disco também nos entrega um conjunto de canções que, mesmo diante de uma concorrência de alto nível, podem conquistar seu lugar em qualquer coletânea do grupo, a exemplo de "Nada nos Basta", "Disney Drugs", "Eu Sou Maria", "O Bom Pastor" ou "Doze Flores Amarelas". Por outro lado, a descontextualização de certas letras – a exemplo de "Fim de Festa" e "Não Sei", que dão voz aos agressores – e, especialmente, a qualidade do registro em estúdio, podem se tornar um problema para as apresentações ao vivo: neste último quesito, para além dos espetáculos de teatro, muitas destas composições encontrarão dificuldade de espaço no repertório de eventuais futuras turnês, por limitações materiais de execução – caso, por exemplo, das canções que contam com grande presença dos vocais femininos e de arranjos de orquestra, as quais podem perder força em um formato mais cru.
Evidentemente, ainda é cedo para compreendermos ou afirmarmos qual será o status de Doze Flores Amarelas dentro da obra completa dos Titãs. As comparações, embora inevitáveis, carregam sempre um quê de injustiça, por não levarem em consideração os fatores inúmeros que se conjugam no momento da construção de um disco – bem como o fato de que o tempo, inexorável, a tudo e a todos transforma. Independente do juízo crítico, porém, faz-se imperioso reconhecermos que Sérgio Britto, Branco Mello e Tony Belloto, acompanhados de um grande time, por aceitarem (e se auto imporem) tamanho desafio criativo a esta altura do campeonato, demonstram grande compromisso com sua própria trajetória, entregando a seus fãs um trabalho com a dimensão e a estatura que se espera sempre de uma grande banda de rock. Ambiciosos como nunca, os integrantes remanescentes mostraram seu poder de fogo com este lançamento memorável, provando que a força da banda, mais do que em um ou outro nome, sobrevive mesmo através do peso que sua história investe naqueles que a continuam. Para além de um grande disco, Doze Flores Amarelas é, portanto, uma demonstração inequívoca que os remanescentes da formação clássica deixam ao seu público de que, sim, continuaremos carregando enquanto possível este nome, de Titãs, não como um meio mais cômodo para pagarmos as contas, mas sim pela consciência aguda daquilo que somos e já fizemos, mirando sempre no muito que, é claro, ainda se está por fazer.
Por Marco Aurélio de Souza
Chegou o III ATO.
ResponderExcluirAguardando tua opinião.
Logo sai a parte final do review, Caio. Abraço
ExcluirSem comentários: álbum e show fantastico! Posso dizer pois fui na gravação do DVD... emocionante!
ResponderExcluirAchei uma grande porcaria .uma ópera rock que precisa de uma narração externa pra explicar o que está acontecendo só mostra que o projeto é mal feito. É péssimo . Ouvi 5 vezes , tentei gostar , mas não dá, é ruim.
ResponderExcluirObrigado por essa resenha! Simplesmente assino embaixo de tudo o que foi dito. O autor conseguiu exprimir exatamente os meus pensamentos acerca dessa bela obra, e de forma bastante detalhada. Vida longa aos Titãs, a maior banda do Brasil.
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